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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Música "Maestro"!!

Hugo Gomes, 09.12.23

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A vida concebida como uma sinfonia, uma pauta clássica que transcende qualquer simplificação cinebiográfica. “Maestro”, o segundo empreendimento de Bradley Cooper na sua demanda na realização, é um objeto estimável de tecnicismo e virtude, há mestria, atentado ao termo, nesta orquestra em desconstrução da sua figura biográfica - Leonard Bernstein (1918 - 1990) - compositor, condutor, pianista e mais que isso, um mentor que moldou não apenas um século musical, mas também o cenário cinematográfico (o que dizer da sonoridade de “West Side Story”, aqui fazendo perninha zeitgeist?). 

Cooper, cresceu como ator, passando de típico galã, o bonito da boysbandThe Hangover” até a sniper no filme vendido de Clint Eastwood (“American Sniper”), com o cineasta e também ator (bem) americano ao que parece terá aprendido devidamente o ofício, e sem meias medidas, aventura-se com Lady Gaga na terceira versão de “A Star is Born”, uma conquista garantida de público, e metido no goto de críticos e Academia. Nesse filme, Cooper, também protagonista, sob fintas atrás de fintas narrativas, trouxe-nos uma obra seca quanto à sua musicalidade, obviamente trazendo parte e parte da sua experiência com Eastwood, de um classicismo quanto à sua natureza, mas nunca na sua fórmula estetizada. Com “Maestro”, um projeto há muito ‘abraçado’ por Martin Scorsese, mas nunca avançado por ele (conta-se que o impedimento estava em de nunca ter conseguido encontrar um ator à altura do papel), Bradley Cooper dedica corpo (e nariz, a ‘parva’ controvérsia envolto do seu nariz prostético) e alma nesta composição, em vista grossa na sua narrativa temos o comum neste tipo de cinema. 

Tudo começa em modo confissão ensanduichada, cujo condimento resume-se a saltos acrobáticos por entre factos e personalidades, como uma lição estudada e decorada da sua personagem. No entanto, dois pontos (e não menores) emergem nesta experiência biográfica. O primeiro, a desconstrução embicada na personagem, que tal como “A Star is Born” é através da presença feminina, a coadjuvante, que é germinado como atalho para a persona incorporada por Cooper. Lady Gaga, a estrela em ascensão em contraponto com a queda de um rockstar no filme anterior, interliga, aqui, com Carey Mulligan (interpretando a atriz costarriquenha-chilena Felicia Montealegre), a esposa dedicada ao sucesso do seu marido (um homem, deve-se salientar, de um única mulher, mas de vários homens). É através da sua presença, a sombra de Bernstein, que gradualmente somos sequestrados à sua óptica, desviando o centro do filme à personalidade-homenagem, excepto quando, munido da sua batuta, conduz esplendorosamente as orquestras ao longo da sua vida. Uma magnífica sequência de mais de 6 minutos, catedral em redor, com Cooper manejando a sua “vareta”, que segundo consta, aprendeu verdadeiramente em nome da veracidade.

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E por aí mesmo que chegamos ao segundo ponto, ou nota musical como apropriação temática, o virtuosismos técnico (os travellings que invejam o espaço, os enquadramentos, o trabalho em fora de campo e para lá dele), fotográfico (as cores, ou a falta delas, desde os tons à saturação, um respeito e por si só contextualização histórica com prisma no cinema corrente) e até na montagem (as transições que entram em diálogo com a memória cinematográfica, e em especial caso com a tradição do musical hollywoodiano), com inspirações e aspirações scorseseanas (associação a nós trazida pelo nome do realizador no registo de produção). 

É um espéctaculo de “directing” à moda que só Hollywood pomposamente conseguiria “parir”, e hoje algo perdido pela automatização e pela validação do realismo-imperador, contudo, é a prova que Bradley Cooper desponte como um dos realizadores do futuro daquela casa do cinema cada vez mais órfã. Juntamos a confirmação do seu nome ao lado de outros talentos em voga como Damien Chazelle (em paralelo com o seu subestimado “Babylon” há uns quantos campos cruzados, nomeadamente a música como transportadora da emoção dos seus personagens), e por fim, Cooper superando-se ainda mais como ator, num desempenho longe da dependência da protética e da mimetização, enquanto que Mulligan, apontada como uma das favoritas à estatueta e com a confiança total do seu parceiro e realizador, possui mais responsabilidade do que condução. Mas o seu “estado de graça” está a funcionar … 

Nada, convém sublinhar, que retire a este “Maestro” a sua grandeza.

A 'kagemusha'

Hugo Gomes, 01.12.23

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Há uma evidente alusão à “Persona” e a “Clouds of Sils Maria”, de Olivier Assayas, quer no confronto de identidades, quer na essência performativa, no entanto, em "May December", a recente colaboração entre Todd Haynes e a sua “musa” Julianne Moore (dupla “unha” e “carne”, evidentemente), evoca inesperadamente, e espiritualmente, um dos últimos trabalhos de Akira Kurosawa: “Kagemusha” (1980). Esse épico kurosaweano, surgido na sua fase pós-consagração, destaca a transformação de um sósia para o seu falecido Senhor de Guerra. Os próximos ao círculo do anterior feudatário apercebem dessas semelhanças, salientes e confundíveis da 'cópia' ao original, até ao ponto em que se tornaria mais autêntico [sublinha-se] que o próprio Senhor. Mais tarde, somos conduzidos a esse duplo-sombra perseguido pelo vulto do seu defunto mestre, numa perseguição onírica, metaforizando a instabilidade e mutabilidade da identidade, que não é mais do que uma 'persona' em constante manutenção.

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Em "May December", Natalie Portman, assumindo o papel de Elizabeth Berry, uma atriz de renome do pequeno ecrã, imersa num novo e ambicioso telefilme, a adaptação da controversa história de Gracie Atherton-Yu (Julianne Moore), uma professora condenada por um relacionamento amoroso com um jovem de 13 anos nos anos 90, automaticamente virando uma figura mediática de tabloide. Portman estuda meticulosamente a personagem expressa em Moore, agora instalada e vivendo um matrimónio, aparentemente feliz, com o seu antigo “amante jovial” (Charles Melton), mimetizando-a para desvendar a sua psicologia, idiossincrasias e identidade, até mesmo invadindo momentos íntimos. A conexão entre o filme de Haynes e o de Kurosawa reside na transformação da(o) 'sósia' até atingir a réplica ambígua, chegando a transgredi-la. Aqui, em cena, a simulação do sexo no local, o ato 'pecaminoso' que dá mote à 'novela', do qual testemunhamos a fuga à crisálida por parte de Natalie Portman (o filme faz uso de um sub-subenredo de borboletas monarcas e as suas diferentes metamorfoses como imagem-guia), a sua tomada de posição, ou diria mesmo superação, a criação de uma nova autenticidade, de uma nova 'realidade'. A 'kagemusha', a 'sombra', aproxima-se do genuíno, desafiando a essência estabelecida pela 'persona original'.

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Quanto à natureza do próprio filme, desviando-se da abordagem clássica sirkeana (“Far from Heaven”) ou dos resquícios de David Lean (“Carol"), "May December" apronta-se num lado pindérico telenovelesco, com a abertura em jeito do 'jingle' de "The Go-Between" de Joseph Losey e os constantes dramas sumarentos com que expõe como rímel de um confronto entre verité e vanitas. Porém, é na sua teoria que se resume a um interessantíssimo ensaio.

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Quatro notas soltas sobre "Maestro" de Bradley Cooper:

Hugo Gomes, 30.11.23

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- Vemos realizador para o futuro! Depois de "A Star is Born", um livro de apontamentos do classicismo à lá Eastwood, deparamos com uma variação mais scorseseana (se não fosse o facto de Scorsese manter-se na produção do projeto), entre movimentos graciosos, transições de alto risco e enquadramentos que jogam nas diferentes perspetivas (há um Snoopy que atravessa o cenário, literalmente, num timing perfeito). Se a Academia não ficar refém da 'nolanização', temos prémio garantido para "Directing".

- Bradley Cooper é igualmente primoroso enquanto ator (sem querer apoiar nos prémios, mas Óscar já é uma garantia), e é uma interpretação acima do seu nariz e das controvérsias (!) que isso acarretou.

- Perdoem-me os "mulligrupies", mas Carey Mulligan é altamente sobrevalorizada, imaginei o seu papel em 10 outras atrizes, e com mais pathos, dinâmica e expressão.

- É mais que um biopic na formatação do termo, é a desconstrução de uma figura de culto, sem degradações e sem venerações, com destaque à "sombra" do génio, à cumplicidade e às suas tragédias  ... tudo embrulhado numa técnica impressionante (e nos dias de hoje, com o realismo formal e com as imperatividades narrativas, desprezamos cada vez a técnica).

O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.

Em Lisboa, a recomendação são as tapas!

Hugo Gomes, 21.08.23

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Em tempos, venderam-nos a Netflix como o último reduto da criatividade cinematográfica, após a homogeneidade do cinema de super-heróis e sequelas atrás de sequelas que as majors estavam destinadas a seguir. Porém, o mito evaporou, e um passeio pelo catálogo do streaming hoje, na sua seleção de originais, revela-nos algoritmos fílmicos, seja em argumentos binários ou estéticas que se camuflam com o livro de encargos do "N" vermelho. Após a tentativa de "Gray Man", com um orçamento de 200 milhões (?), resultando numa sopa instantânea sem sabor, eis que chega-nos a mesma fórmula em outras roupagens, com Gal Gadot assumindo a condução de mais um protótipo de espionagem global, daqueles que Hollywood produzia em abundância no pré-11 de Setembro (ressalta-se que nesse lote, apenas a saga "Missão Impossível" sobreviveu graças à seleção natural e a Tom Cruise, num constante desafiar da sua existência). 

"Heart of Stone" soa-nos escrita de Inteligência Artificial (e infelizmente, essa tendência está a tornar-se mais do que habitual), peças encaixadas à martelada, lugares-comuns estampados sem pudor e algo que nos tentam convencer de serem personagens, só que se tratam de meros avatares deste videojogo chamado "novidade de streaming". No fundo, é esquecível, acredito que até mesmo antes dos créditos finais já o “olvidamos”, portanto, deixemos o parte do furto de Tom Harper ("Wild Rose") e foquemo-nos no tal "elefante na sala" (o faits divers para nos acalentar a dor) - Lisboa, cidade menina e moça - aqui interagida na ação de passagem como uma capital de postal. É assim que os "gringos" nos veem, até porque, Gal Gadot, seguindo o conselho da sua superior hierárquica, em Lisboa come-se tapas (!). 

“Heart of Stone” e seus afins, são ‘produtos’ verdadeiramente prejudiciais à qualidade do espectador dos nossos tempos (talvez seja um sintoma deste estado agravado), mais do que os fenómenos “Barbenheimers” desta vida que muitos conspiram e acusam como atentados à nossa estabilidade social.

Maria Clara Escobar: "Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos"

Hugo Gomes, 29.06.23

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Em janeiro de 2020, a poucas semanas do confinamento... sabíamos lá nós no que é que iríamos meter... antecipava-se mais um Festival de Roterdão. Esse ano contaríamos com uma presença, em parte, portuguesa - "Desterro" - obra da brasileira Maria Clara Escobar, a disrupção de um seio familiar e matrimonial, uma mulher em fuga e Trio de Odemira em baile.

A realizadora concordou em encontrar-se comigo para uma conversa sobre este seu trabalho e de certa maneira foi disso que tetamos restringir, mas as assombrações contemporâneas pairavam entre nós - do outro lado do Oceano Atlântico, Bolsonaro era o representante máximo do Brasil e Roberto Alvim, porta-voz da cultura, havia solicitado, em jeito Joseph Goebbels, uma aliança da arte com os valores defendidos pelo governo em atuação.

Passados três anos, resgato esse diálogo, essa incerteza vivida diversas vezes, relembrada pela existência de um filme eclético, pujante e autodestrutivo como "Desterro", hoje disponível na plataforma Netflix, ou em sessões especiais em mostra e cineclubes como é o caso do Alvalade Cineclube e o seu ciclo "Família é Família" [ver programação aqui].

Começo com esta pergunta trivial e meio informal, como se sente em ir a Roterdão com o seu filme?

As pessoas que trabalharam e tiveram comigo tanto tempo no projeto vão ser reconhecidas de alguma forma e vão também poder estar lá. Mais por eles e primeiro do que por mim. É importante esse tipo de reconhecimento porque, de alguma forma, combate um discurso que está sendo feito de que os filmes que estão sendo feitos nos últimos anos do Brasil são ruins ou não interessam a ninguém. Então, de alguma forma, é uma conquista política também lá estar. 

Mas buscando essa parte da conquista política e tendo agora os últimos envolvimentos acerca da nominação ao Oscar [“Democracia em Vertigem” de Petra Costa como Melhor Documentário], ao Brasil, também há de uma certa parte quase um esforço em vão, este reconhecimento mundial, mas em território nacional, pelas altas patentes, não é reconhecido e por isso completamente desprezado. Não há certo sentimento em vão?

Acredito que não, porque toda conquista é uma conquista. E de certa forma, isso responde. Não quer dizer que vá resolver a paralisia que estamos a viver atualmente no cinema, mas responde e mostra que estamos em diálogo com o mundo e com as coisas. Portanto, não é em vão. Existe algo muito valioso nisso, que é a minha única esperança, na verdade, em relação ao Brasil. As pessoas aprenderam a falar, aprenderam que podem falar, podem fazer coisas, podem fazer filmes, podem publicar coisas, podem escrever na internet. Isso é algo que acredito que não voltará atrás. Existe uma potência de resistência nisso. E, bem, isso nos liberta para ter confiança em falar sobre as coisas, não é mesmo? Poder falar sobre o nosso presidente, sobre a situação do Brasil e, claro, a Petra [Costa] ainda mais, no Oscar, que é também um lugar reconhecido por essa parte da população brasileira, que está muito ligada à humanidade dos Estados Unidos, à América do Norte, e assim por diante. Portanto, é um reconhecimento muito importante.

Voltando ao “Desterro”, gostaria que me falasse sobre a sua criação, da ideia ao argumento que escreveu em colaboração com a atriz Carla Kinzo [a protagonista]. 

Eu comecei a escrever este argumento quando ainda estava a concluir o meu documentário "Os Dias com Ele" (2012), que fiz com o meu pai. Acredito que em algum momento descobri que estava interessada em abordar algo irreparável, algo que também está presente no documentário, que fala sobre a tortura e a Ditadura Militar. Havia, por um lado, o desejo de abordar o comportamento de uma classe média brasileira que, naquela época, jamais imaginaria que iria desembocar na situação em que nos encontramos hoje. Era uma forma de se ausentar um pouco, de evitar conflitos e dizer "enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não chegarmos a isso, isso não existe". Mas as coisas estão a acontecer, essa estrutura familiar está a repetir-se historicamente. 

Não é por acaso que quando chegamos à votação do impeachment da Dilma, todos votam em nome das suas próprias famílias. Esse era um ponto de partida, de certa forma, para refletir sobre o que isso significa. No final das contas, acredito que a resposta para mim é destruir a casa, destruir a ideia de casa. Foi assim que o vimos. Ao longo do processo, que durou cerca de oito anos, desde o início até agora, trabalhando em conjunto com a equipa, com a atriz, passamos três anos no quarto, foram sendo descobertas outras coisas.

Muito da sequência do autocarro foi construído em conjunto com as mulheres que surgiram na minha vida ao longo do processo, à medida que o mundo ia mudando e eu também ia mudando. Fui pensando com eles, sobretudo.

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Maria Clara Escobar no Festival de Roterdão

Ou seja, o filme representa um processo de mudança e criação. Talvez seja essa a sensação que ficou em mim ao assistir a "Desterro", a de ter presenciado dois filmes completamente opostos. De facto, existe uma clara fissura entre o protagonista no Brasil e a protagonista deixando o país. Gostaria de saber a sua opinião sobre a questão de deixar o Brasil. Apesar de ter mencionado que não possui as mesmas referências que existem no mundo atual, hoje em dia faz mais sentido abordar essa temática. Este filme adquiriu uma interpretação própria.

É difícil falar sobre isso porque não posso falar pelas outras pessoas, mas para mim sair do Brasil não é uma solução. É uma solução de sobrevivência individual para aquelas que pertencem a uma certa classe social. No entanto, cada pessoa tem a sua própria história. Para mim, na verdade, trata-se mais de uma questão de território, no sentido simbólico de deixar um determinado espaço, um certo território, e conseguir se transformar ou se reinventar em outro tempo, em trânsito, na verdade. A questão do trânsito é mais importante do que simplesmente sair do Brasil... É claro que estou falando a partir do Brasil, mas não acho que seja uma questão exclusivamente brasileira. É um reflexo da nossa sociedade familiar e patriarcal.

Até saindo do lado politizado, é um lado compreensivelmente existencial.

Sim, acho que é mais nesse caso. A ideia de atravessar uma fronteira, que no exemplo do filme, é física, e igualmente simbólica, o ato de não ter mais para onde voltar.

Até porque a personagem principal é completamente amarrada a certas questões morais, a própria ideia estabelecida de que uma mulher na sociedade deve restringir a casa, família, filhos, casamento, etc. O momento em que ela realmente se libertou foi naquele não-lugar, uma área de serviço que é uma mistura de bomba de gasolina ou discoteca. Gostaria que me falasse dessa determinada cena e na escolha da música [“Ana Maria” dos Trio de Odemira].

É genial a banda, porque tem uma coisa muito racional e ao mesmo tempo muito passional. O filme é brasileiro, é português e é argentino, por isso a música realça essa identidade portuguesa presente. Só em Portugal alguém consegue ser tão apaixonado e tranquilo ao mesmo tempo. A música transmite algo muito forte. Ele está em desespero, mas canta a rir. E no videoclipe é ainda melhor.

Mas acho que a escolha coincide com o filme porque vai dando pistas. Ela aborda toda a representação da mulher que já foi feita, ou que ainda é feita, em argumentos, em livros, em filmes. Como pensamos e enquadrámos uma mulher e tentamos colocar isso em questão. Então ela está lá no auge, tem um tipo a chamá-la... Enfim. A dizer tantas "coisas ruins" sobre uma mulher quando, de repente, não é essa imagem que vemos. Essa desconexão faz parte da natureza de "Desterro".

A música é praticamente solta para a sequência em si. É como se fundisse dois ferros de diferentes estruturas numa única peça. E é curioso, a própria protagonista em transe naquela cena.

Eu acredito que o filme em si é construído dessa forma. Sempre foi um desejo meu. Por exemplo, durante a edição com a Patrícia Saramago, eu costumava dizer: "Se está parecendo bom, vamos fazer o oposto". Não no sentido de ser bonito, agradável. Se o filme está parecendo confortável, acho que devemos tentar o contrário. Porque desde o início, o filme trata também de ir contra uma certa tradição do cinema de ser excessivamente realista e ter que fingir que você não está assistindo a um filme, para que as pessoas acreditem que elas vão sentir algo, entende? Elas precisam se distanciar e acreditar que aquilo é apenas um filme. 

Portanto, há sempre um desejo de construção em memória de que este filme existe, ele é um filme, e apesar de ser um filme, ou talvez por ser um filme, sentimos coisas e estamos imersos nessa ... Acho que isso está relacionado com o conflito das questões e aprofundá-las, e sentir mais, ter consciência das coisas. Então, havia esse desejo de desconforto presente durante a construção dos atores e atrizes, na estética, na edição posterior, e também nas músicas.

Outra questão a abordar, algo que está muito em voga, inclusive com a influência dos Oscars e do filme "Marriage Story", é a deterioração amorosa que leva ao divórcio. No seu caso, é uma separação, independentemente dos bens. No entanto, é curioso que as únicas cenas em que esse casal se comunica ocorrem durante o “café da manhã” [pequeno-almoço]. E mesmo assim, a comunicação é superficial, consistindo em conversas triviais e de certa forma desconectadas das emoções. Além disso, é interessante notar que nessas sequências a Maria Clara utiliza o falso raccord.

Tinha o desejo de repetição, mas também de desconexão. Na verdade, o segundo “café da manhã” é filmado através de um espelho, o que causa tanta confusão, porque constantemente há uma alteração de eixo. No entanto, acredito que há um forte desejo pelo novo. Para essa sensação de conexão, pensamos muito em como criar um sentimento de estar gradualmente desconectado, mas ao mesmo tempo não deixar claro a consequência do ato. Não é um problema, é mais uma questão de surpresa. Não ficamos pensando "Ah, olha, estão fazendo isso dessa forma". Sempre ficamos com uma certa sensação. 

Para mim, a gramática é o primeiro sistema, certo? A primeira organização sistemática. E as palavras são uma forma de conflito. Usar palavras, falar, sempre vai gerar algum tipo de conflito no sentido de que o outro nunca vai entender exatamente o que se está a dizer. E vai tentar responder a algo e, acho que o espírito vai permanecer nessa desarmonia, como diz a personagem. Então, de certa forma, eles não estão realmente ali. Eles não estão mais em relação.

E a palavra, talvez a partir desse ponto de vista, deixe de fazer sentido para eles dois, como se eles estivessem apenas repetindo coisas. Apenas ensinando que a paz é uma ilusão na vida deles.

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De certa forma, o casamento é uma encenação?

De certa forma, o casamento é uma representação. É verdade! Eles estão ali cumprindo os seus respectivos papéis. O filme também aborda isso. Quando a personagem do Júlio (Rômulo Braga) entra em cena, ele de certa forma repete um modus operandi, assim como ela repete um padrão de comportamento ao substituir apenas o ator dos meus papéis, sem questionar muito. Para mim, tudo é uma encenação de alguma forma. Mas é importante sempre manter um diálogo com o que se sente, com o que se é, com o seu mundo, com essa encenação que realizamos. Caso contrário, ela se torna apenas uma representação vazia, algo que ninguém mais deseja assistir ou que não faz mais sentido algum. Não traz transformação. É como encenar uma peça antiga.

No seu filme é nos incutindo um poema - “ O Útero é do Tamanho do Punho” de Angélica Freitas - que por sua vez tem uma “história” com os deputados da extrema-direita de um estado brasileiro, quer-nos contar essa história?

Este poema é um dos poemas mais... como posso dizer... impactantes que li nos últimos tempos. Acredito que há algo central no filme é tentar compreender o que é e como pode ser uma mulher em movimento. Estamos acostumados a "congelar". A pensar "esta mulher é assim, esta mulher é assim". As pessoas, de um modo geral, mas especialmente as mulheres, são historicamente obrigadas a serem julgadas e terem outras pessoas definindo o que são, escrevendo sobre elas, fazendo filmes sobre elas. Então, este livro aborda muito a impossibilidade dessa mulher. A mulher que se desvia um pouco do que é considerado puro, que é tida como suja, bêbada, má. Não há lugar para ela. 

E o poema é extremamente violento, mas ao mesmo tempo muito preciso, muito correto. E sim, essas coisas que acontecem, os filmes demoram a serem feitos e não têm qualquer relação com o governo, com este poema em particular, sequer. No Brasil, para ingressar numa universidade, é preciso fazer um “vestibular”, uma prova abrangendo todas as disciplinas em geral, depois são realizadas provas específicas.

E há leituras obrigatórias, livros que devem ser lidos para realizar essas mesmas provas. E um dos livros que é obrigatório é o dela. Acredito que seja em alguma área específica, como ciências humanas, literatura, letras, algo assim. E então o governo, julgo que seja do estado dela, que é do sul [Santa Catarina], tentou proibir, afirmou que era um absurdo a existência desse livro, que ofende a moral religiosa. E de facto, o livro pode ser ofensivo em algum sentido, mas isso só significa que a nossa sociedade mantém um vínculo muito patriarcal e machista. 

Eu senti assim, como se estivesse em diálogo com as pessoas certas, porque é sobre isso, é sobre desconstruir essa ideia da mulher confinada em casa, preparando a comida para o marido. Essa imagem está muito ligada ao catolicismo, ao conservadorismo religioso. E isso se estende também a outras religiões.

E o casamento é uma questão existencial, não é apenas uma prisão existencial, mas também uma limitação da própria possibilidade de subjetividade. Acho que se trata de como uma mulher se vê, como vê o seu horizonte, e como um homem se vê, que horizontes consegue vislumbrar. Como a subjetividade é mais restrita para as mulheres e como isso as afeta.

E quanto a novos projetos?

Estou de momento a trabalhar em dois filmes. Um é um documentário ficcionalizado. Não sei bem como descrever, mas estamos a trabalhar com uma amiga nossa que é empregada de limpeza, ou melhor, diarista, como ela se refere. Ela sempre teve o sonho de cantar. Então, decidi fazer um filme em que ela pudesse ser cantora e experimentar isso. No filme, ela se transforma numa cantora e gravamos um álbum com ela. Ainda está em processo, falta a montagem e dinheiro para finalizar. Também estou a escrever outro filme chamado "O teu silêncio não te protegerá". Mas está ainda numa fase inicial, é apenas um esboço.

Mas já tem título!?

Na verdade, é uma frase de uma feminista chamada Audre Lorde. Mas acho que, de certa forma, pelo título, já dá para perceber que o filme segue em frente no pensamento da mesma questão. Está relacionado com tudo o que falamos, sobre a palavra, sobre a política …

Ou seja, também será um filme politizado?

Sim. Com certeza.

O facto de também ter agora dois projetos em mente e este medo de não haver financiamento para filmes brasileiros …

Tal como o “Desterro”, serão co-produções.

Gostaria que me falasse sobre esse medo, e o resgate da coprodução assim dizendo, e o que é que poderíamos esperar pela sua ideia de cinema brasileiro do futuro. Acrescentar, acho que foi ontem que um dos representantes da cultura brasileira [Roberto Alvim] fez um discurso muito "goebbels" acerca do cinema …

Aí precisa de letras "Goebbels", ele cita o "Goebbels", é assustador. É complicado falar sobre o futuro, porque nós não sabemos. A verdade é essa. Neste momento, o cinema está paralisado. A ANCINE funciona com uma diretoria colegiada que precisa de pelo menos três diretores, e dois para que qualquer decisão seja tomada. Acho que mais ou menos há um ano, o Bolsonaro não nomeia ninguém para ser o segundo diretor. Então, nada pode ser decidido. Enquanto isso, cortes estão sendo feitos não só na cultura, mas também na educação e na saúde, o que é fundamental para a existência do país e também para a cultura, para que as pessoas possam viver. É um governo contra qualquer ideia de pensamento, que declarou uma guerra, suposta guerra, contra esse inimigo que é aquele que pensa. Eles acham que quem pensa é o que atrapalha. Então, neste momento, não dá para saber o que vai acontecer, quanto tempo esse governo vai durar, o que virá a seguir. Eu acho que provavelmente serão vários anos de incertezas que teremos à nossa frente. E as pessoas vão ter que buscar dinheiro à Europa novamente.

Existem uma série de fundos, alguns fundos que existiam e nos quais o Brasil era contemplado anteriormente, porque era um país pobre e ao longo do seu desenvolvimento económico foi excluído. Fundos que vão para a África, vão para a América Latina. Talvez ele volte a fazer parte desses fundos agora que sua economia está em queda. Não sei, vamos ter que reinventar de alguma forma. Não sei se os filmes vão ser feitos da mesma forma, acredito que será mais difícil fazer filmes. 

Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos. Mas também não quero fazer um discurso derrotista. A indústria cinematográfica é uma classe privilegiada, assim. Então, também não acho que todas as pessoas vão parar de fazer filmes. Agora, o pior é para as pessoas jovens que estavam a começar. Mulheres negras fazendo filmes no Brasil, ampliando a visão do nosso país e promovendo reflexões. Essas provavelmente serão as primeiras a serem excluídas por falta de recursos, por falta de conexão com a Europa, por exemplo.

200 Milhões de dólares para o "boneco"

Hugo Gomes, 27.07.22

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Num cenário de destruição e de pirotecnia variada ocorrida numa praça de Praga, a personagem de Ryan Gosling [o nosso “herói”, ou será antes “anti-herói”?], algemado a um banco, tenta se abrigar e esquivar (com êxito) da “chuva de munição” que aquela mesma sequência proporciona. Longe do alcance daquele espectáculo anormal, mas observado todos os passos por via de um elaborado sistema de vigilância, Chris Evans [aqui definido, e sem sombra de dúvida, como vilão] esperneia furiosamente pelo facto, e que passo livremente a citar, de ninguém conseguir atingir em naquele “fulano” acorrentado. 

Aqui, é de invocar um dos badalados mandamentos da lógica batida do filme-espectáculo, hoje estabelecidos como clichés em modo auto-paródia: a má pontaria dos antagonistas perante o herói do enredo, a outra subjacente, é a sua evidente sorte para escapar “ileso” aos proporcionados obstáculos. “The Gray Man”, dos irmãos Russo (“The Avengers: Endgame”), não inventa nada nesse sentido, nem mesmo é apontado como o último da sua espécie, mas é surpreendente (talvez seja a minha ingenuidade a manifestar-se) que a Netflix tenha apostado 200 milhões de dólares (até à data o seu filme mais caro) para conduzir-se em lugares-comuns em contracurva com outros lugares-comuns numa ação globalizada, visto e revisto nos anos 90 e em início do novo século. Hoje em dia, essas vertentes instalaram-se (ou antes "acomodaram-se"), ora em franchises duradouros (“007”, "Fast and Furious”), ora nos atributos e nos "cojones" da fisicalidade de Tom Cruise (“Mission: Impossible”). 

Quanto aos “outros”, chuviscos que a Netflix anseia capitalizar. Experienciamos tal com um formatado “Red Notice” (Rawson Marshall Thurber, 2021), uma reunião estrelar que antecede a este “The Gray Man”, que por si só piscar para uma futura saga. Ambos os exemplos situa-nos num impasse quanto à sua criatividade e engenhosidade na execução, por outras palavras, não existe Cruise e os seus arriscados stunts - como se fosse um espectáculo a merecer o bilhete - que salve, ou dos backgrounds definidos dos seus protagonistas (um “007” não necessita introduções elaborados, o espectador sabe para o que vem), resultando num joguete de ação “bombista” (explosões atrás de explosões sem um mínimo de consequência) ou dos chavões emocionais, intervenientes numa aparente narrativa que se pretendia fluída  - papas para alimentar um espectador menos atento [a inserção de uma “sobrinha” como motor sentimental e humanista do “herói”]. Coloca-se um macguffin, acelera-se na edição (o travão é território interdito), o mesmo acontece na interação entre personagens e até mesmo numa câmara que teima em não fixar num ponto sequer (mesmo no estático há que dar movimento, não vá o público aborrecer pela "inércia", segunda a sua lógica), enfim, inúmeras parcelas para estabelecer uma fórmula. 

E pronto, é isto, 200 milhões (era mesmo preciso?) para lubricar cinema algorítmico, e que tendo em conta as recentes notícias, o “feito” resulta … vem aí mais “The Gray Man”! 

O Fim do Mundo em cuecas!

Hugo Gomes, 25.12.21

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Ao encontro da sua contemporaneidade, Adam McKay “abocanha” elementos pitorescos para um caldeirão de caricaturas a fim de condensar a receita dos nossos dias. É de facto que a indicação de “uma comédia da nossa atualidade” e todas as suas derivações, ou sinónimos, são (a esta “altura do campeonato”) clichés atrás de clichés que não adiantam nem afrontam em nada neste “Don’t look Up”, uma tragédia de inúmero caudais, ora certeira, ora disparada, que revela um dos melhores trabalhos de um realizador tão dado a “chico-espertices” como McKay. Por vezes, há que desejar o armagedão como solução final para a futilidade e cinismo (adicionando a fórmula de “estupidez” em todas elas) no qual virou a raça humana, e é nessa interpretação que conseguimos lidar com a sátira hipócrita aqui descrita (um elenco demasiado luxuosos para não conseguirmos afastar-nos do seu lado de produto de prestígio hollywoodesco).

Felizmente, a grande viragem deste novo ensaio reflexivo perante os outros pelo qual McKay deseja ser reconhecido (“Vice” ou "The Big Short”), afastando-o das comédias estapafúrdias e de êxito improvável (salva-se alguma astúcia nas indignação de Ron Burgundy ou na acefalia “americanada” de Ricky Bobby). É que, na verdade, o realizador ri-se com o espectador e não ri-se dele. A superioridade, pelo menos a sua dedução como tal, é por fim inibida com pé de igualdade. Se o derradeiro destino do planeta Terra é este … então despachemos esses “cavaleiros do Apocalipse" de uma vez por todas.

Em Las Vegas, os mortos-vivos também apostam

Hugo Gomes, 21.05.21

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Em modo de troça poderíamos garantir que “Army of the Dead” ("Exército dos Mortos”) é um “Ghost of Mars” de John Carpenter, mas com zombies … e sem Ice Cube (em compensação temos um tigre zombie para “animar” a festa). Se o filme lançado em 2001 bebia das inspirações de Howard Hawks e o seu “Rio Bravo”, a nova incursão de Zack Snyder (“The Justice League”) tem influência espiritual nos westerns da velha fórmula dos “civilizados” contra “selvagens”.

Obviamente, não querendo fazer "Exército dos Mortos” mais do que aquilo que é, um júbilo por parte do realizador (visto o filme ser uma ideia original dele) como pretexto para regressar às suas origens - aos mortos-vivos propriamente ditos do seu bem-sucedido remake de “Dawn of the Dead” (2003). Mas não esperemos sequela aqui, aliás, assim como George A. Romero, esse “rei dos zombies”, fez com que o “Amanhecer dos Mortos” (o original “Dawn of the Dead”), história própria, tornasse parte de um universo projetado e putrefato iniciado por “Night of the Living Dead”.

E continuando nessa trajetória paralela, "Exército dos Mortos” bem poderia integrar qualquer uma dessas visões (visto que hoje somos altamente viciados na continuidade e na partilha de franchises), não desfaz as criações de 2003 e ainda persiste em ideias deixadas por Romero, neste caso no “zombie inteligente” e animalesco de “Day of the Dead” a “Land of the Dead”. Ora bem, passando a “bola”, Zack Snyder consegue em 2 horas e meia a confirmação do morto-vivo mainstream, vinculado com o conceito blockbuster, milhões e milhões investidos.

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Cruzamento dessas réstias de western sofisticado e heist movie (filme de golpe), este musculado “comboio-fantasma” presta-se por um ritmo trabalhado em constante trambolhão com os códigos familiarizados do cinema-pipoca. Porém, o nosso realizador não é nenhum tarefeiro, e perante o peso “insuportável” das majors que trabalha (basta ver as suas incursões da DC [com “Watchmen” incluído] para entendermos que temos um artesão em plena resistência para cumprir as suas visões), expressa uma assinatura (mesmo que aqui esteja contida para servir-se primordialmente à narrativa e não há estética) e uma gradual atualização de um enredo de A a B para consolidar com o nosso mundo (as subtis apropriações do fenómeno Covid19) e com o seu (a relação de pai e filha que inevitavelmente leva-nos a uma fantasia de redenção do autor).

Pode-se dizer o que quiser, que “Exército dos Mortos” é mera chapa do atual cinema "industrial". E sim, também é isso. Mas com a liberdade total de que aqui dispôs, Zack Snyder provou ser mais coerente, enquanto autor "pipoqueiro", do que Michael Bay com o mirabolante e febril (não consigo arranjar mais adjetivos) “Underground 6”, também para a Netflix. Temos aqui cinema de milhões lubrificado e requintado, com o gozo suplementar de descobrir Matthias Schweighöfer a romper com o estereótipo "comic relief" da sua personagem. É um pequeno “achado”.