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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

E a seguir, Leonor?

Hugo Gomes, 12.08.23

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A miúda dos sapos”, cognome que Leonor Teles, assumidamente, deseja evitar após a sua “brincadeira” em forma de curta-metragem [“Balada dos Batráquios”] ter sido agraciado pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2016. A partir daí, surge-nos uma busca por algo maior: que cineasta temos em Leonor Teles? Uma demanda que a levou a uma longa à margem do Rio Tejo no rasto de uma personagem que sobressaísse do seu próprio filme - Terra Franca (2018) - passando para uma curta ambientada no Porto, com o fenómeno da gentrificação a remeter ao coração-vadio desse falso coming-to-age (“Cães que Ladram aos Pássaros”) em 2019. Talvez é nessas escapadinhas de “rapazes” que troçam de um iminente e incerto futuro que esteja encontrada a vertente do seu cinema, a preocupação de uma jovem urbana que enfrenta sozinha as adversidades do Mundo em movimento, um reflexo de todos os outros jovens, partilhando experiências, fraquezas e inquietações, e é daí que nasce um “Baan” (do tailandês “Casa”), a ficção em metragem de longa como desvirginação desse território. Será que desvendamos a Teles cineasta?

Contado em dois tempos e em dois locais, a jovem L (Carolina Miragaia), um heterónimo não assumido, dividida entre a Lisboa das orlas do Almirante Reis e o Bangkok de braços abertos (e apropriados) às estéticas de Wong Kar-Wai, fascínios e fixações, realidades e simulações, uma protagonista como tantos outros adultos “verdinhos”, de futuro pixelado, e ansiosos por uma resgatada luz ao fundo do túnel (conhecemos ‘gente’ assim, e pior, nada fazemos para os retirar dessa existencial situação, porém, até nessa passividade confirma a nossa impotência enquanto sociedade coletiva). Para todos os efeitos, este é um filme de descoberta e auto-descobertas, é Leonor Teles, esbanjada de elogios carreira acima e carreira abaixo, encarregada de tarefas hercúleas que vai desde a fotografia do díptico de Canijo ou do outro conto de inquietudes joviais (“Verão Danado”) em jeito festivaleiro, e agora motivada a emancipar-se, com isto, usufruindo dessa história de superação ao status vivente.

Não se deixem iludir pelo tom aqui descrito e escrito, Leonor Teles é um dos nomes maiores do nosso cinema, mesmo em tenra idade, por detrás das câmaras ou detrás da sombra de outros realizadores, é o rosto de um novo movimento, de um novo cinema português. Portanto, falar de Leonor Teles é falar do futuro, mesmo que em “Baan” encara-se uma experiência de impasse. Onde o filme quer-nos levar? Ou, o que poderemos extrair do filme? Nesse sentido, há que realçar a sensibilidade temporal e espacial de Teles em construir por via de uma diluição local um não-lugar. Entre Bangkok e Almirante Reis existe uma New Lisbon ou será um Bangkok europeu? É através do tal não-lugar que se reencontra a não-presença, a heroína silenciosa que está lá e não está, um brilhantismo espectral onde cada tempo é uma imprecisão.

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Flashbacks? Tal não é delineado, nem descrito visualmente como um conto em estado de progressão, “Baan” é sobre uma jovem, não de frente ao seu tempo, mas do seu tempo, não está presentemente no local nem na época, o seu espírito permanece ausente, talvez “preso” aos ecrãs de dispositivos tecnológicos em desejo de uma reabilitação, quem sabe? É um filme de desespero, de um desespero contínuo, sufocado e rebaixado. Leonor Teles, em conformidade com o já mencionado “Verão Danado” de Pedro Cabeleira, com “unhas” suas no visual, comunica com a sua geração, sem condescendências nem padronizações, e sim com empatia às suas “dores”.

Sentimo-nos em casa com as angústias da protagonista, contudo, é também uma obra de despertar a uma cineasta, a voz está embutida neste não-lugar e neste não-tempo, mas infelizmente a realizadora ocasionalmente abandona o corpo de Miragaia e avança às prestações a um ativismo colectânea, tentando “enfiar” tudo o que consegue no que requer a preocupações da Teles político-social sem o mínimo avanço nas bandeiras que escolhe. Perde-se a coerência do seu intimismo, adquire (sublinha-se intermitentemente) uma ânsia de agir (leia-se “apontar”) às patologias da sua contemporaneidade, como se assumisse um objeto plenamente politizado, enfim, todo o ato é político e o retrato desta jovem naufraga é mais que suficiente para o embarcar.

Desvia-se do coração e desvia-se da fonte, mas Teles é futuro e o seu cinema encontrará a forma sintática devida, nisso, sim, acreditamos. O restante é uma vidência do que Leonor Teles poderá se tornar, e ainda bem … 

Quando Stalin conheceu Cristo ...

Hugo Gomes, 05.01.23

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Estou cansado, fecho os olhos e só vejo o Futuro.

O cinema de Aleksandr Sokurov ostenta uma veia museológica, não se limitando ao recorrente tema do Museu como espaço e núcleo gerador das suas experiências cinematográficas (a proeza de “Russian Ark” [2002], rodado em um só take, ou até o pouco falado “Francofonia”), e sim, no intuito de envergar por uma vitrine direcionada ao século XX, onde um punhado de “figuras históricas”, ou símbolos (de forma a enaltecer o respetivo lado mitológico de muitos deles), são induzidos em reflexões latentes e toda uma gíria jocosa e analítica em seu redor. 

O russo Sokurov fala da História para lá do senso crítico, sublinhando o sentido criativo possibilitado pela mesma, e “Fairytale” é mais um dos resultantes desses diálogos interiores, a sua colectânea de “achados” históricos ao uso de um “proveito cinematográfico”, porém, desviando-se da forte composição narrativa da sua quadrilogia do Poder [“Moloch”, “Taurus”, “The Sun”, “Faust”], mas conservando o motor da mesma (o período histórico como maquete). 

Imaginemos o seguinte cenário: Stalin, Hitler, Mussolini e Churchill, inegavelmente as “estrelas” do passado século, despertam do seu ininterrupto sono no Limbo, aí seguem trilho acima por vales e penhascos dantescos em direção aos Portões dos Céus (“os melhores cristãos são os comunistas”, assim vende o soviético o seu “peixe”). Vale a pena ressaltar que pelo caminho depararão com Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte, evidentes influências e inspirações que tão bem compuseram estas figuras. Uma premissa para além do surrealista, imaginada literatura de Dante contorcida em vestes de atualizadas políticas, só por este “pitch”, teríamos a merecer um projeto diabolicamente criativo e complexo quanto à concepção e abordagem. Mas Sokurov surpreende, quer dizer, vindo dele surpresa não é inteiramente uma palavra espontânea, visto que o rigor técnico e mais que isso a proeza hercúlea com que encara formalmente os seus filmes leva-nos a isto (ensaios que nos conduzem ao limite das suas forças. 

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O cineasta prometeu-nos quatro protagonistas históricos no Além (os delineadores do Velho Mundo contemporâneo), e assim foi, os próprios, possíveis através de uma tecnologia em função de arquivos. Os seus rostos “animados” prevalecem para fora do seu tempo e do Tempo em questão, são personas múltiplas, esmagadas pelos seus "pensamentos", pelos seus feitos desvanecidos enquanto castigos naquele Inferno improvisado, falam de filosofias pessoais, renegam a redenção, pregam aos seus motivando Guerras “Santas” sem uso algum. Sokurov joga-se para os braços destas mesmas “personagens”, eles nos guiam pelos becos da sua Eternidade como Virgil encarregou-se, levando pela mão Dante Alighieri através dos Nove Círculos Infernais em busca da sua amada Beatrice

Neste caso o quarteto procura aquilo o qual incessantemente procuravam em vivos, a sua evangelização (“religião é uma doença psíquica"), o seu pedaço de História marcado a punho de ferro e fogo de trincheiras, mas “Fairytale”, esse conto de fadas, é um jogo cruel, virtuosos e exuberante quanto ao seu conceito, para que no final seja digno de “conversas de urinol” do qual política e belicismo são falados na trivialidade do quotidiano. 

“Não há lugar para melancolia, não ouçam o Sokurov, avancemos.

"Objetos de Luz": da luz nascemos, da luz morremos

Hugo Gomes, 28.08.22

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Da última vez que Acácio de Almeida assumiu a realização, foi há 47 anos num acontecimento cinematográfico denominado de “As Armas e o Povo”, a colheita de emoções e a transição de um país novo vivendo as orgásticas comemorações do 25 de Abril e do primeiro 1º de Maio. Mesmo “não creditado" ele esteve lá, porém, apesar do longo hiato, de Almeida não esteve longe do cinema, pelo contrário, bem perto, presente e criativo. Não é por menos que se tenha vangloriado o estatuto de lendário diretor de fotografia da cinematografia portuguesa, o seu percurso é também uma recolha de experiências, impressões e dedadas digitais. 

Em Acácio de Almeida existe um cinema seu, tão seu como dos que assinaram os créditos de realização. Portanto, é com 47 anos em “segundo plano” (as aspas importa para desfazer o literal sentido, como se no cinema existisse hierárquicas artísticas, apesar de encontrarmos nela uma pirâmide composta por capitães e sargentos, assim como praças, já dizia Joaquim Pinto em “E Agora? Lembra-me”), entre Macedo a Oliveira, Cunha Telles a Azevedo Gomes, Villaverde a Costa, ou Silva Melo a César Monteiro, que regressa com uma direção da sua (co)autoria. Só que não é um filme. Quer dizer, é um filme, uma metragem, uma expressão traduzida em imagens anexadas a palavras, é um trabalho como manda a bitola cinematográfica, não vamos destroçar o Cinema como algo padronizado. O que realmente quero dizer é que Acácio de Almeida elabora ao longo de 60 minutos uma reunião, quer de amigos, colaboradores, rostos e mãos que lhe teceram o cinema tão dele como nosso, e através desse círculo de “conhecidos”, começou a falar. Ou talvez seja a deambular, pelos seus pensamentos, as reflexões de cinema que “pintou” e mais do que isso, na combustão desse seu universo - a Luz. 

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Trabalhar a luz, é como trabalhar os signos da vida. É ser Deus por um dia, ou melhor, por uma rodagem. É questionar a nossa existência. É ceder ao reduzido da nossa insignificância. Para Acácio de Almeida, não somos mais que “Objetos de Luz” (o título revela mais do que a designação), filhos da escuridão apenas contornados pela sua antítese: “O que somos nós em relação à luz? Qual o elo que nos liga a ela?” Perguntas lançadas ao abismo, posteriormente respondidas com a confirmação do óbvio - “somos feitos de luz”. Mas a jornada até essa resposta indefinida é um questionamento da Ordem do Cinema, a dita e simbiótica corrente de todas as partes, não é mais que uma ilusão. A Luz é o centro de tudo, como do fim dos mesmos, e Acácio de Almeida pensa em luz. 

O filme (aí está a minha contradição) é inicialmente o arranque desse filosofar, presentes em encenações (Manuel Mozos, o nosso “zeitgeist” era cameo mais que esperado) ou de constatações (Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra a constatar que o tempo avança, a juventude morre e só a luz que projeta essas “memórias” imagéticas de um passado “lucidamente” imortalizado). Acácio de Almeida brinca por momentos com a sua filmoteca, mas cede ao bucolismo como via de criar um filme seu concretamente enquanto interroga o seu espaço (“O cinema é uma prisão, a prisão da memória. Aprisiona para libertar (...) fusão de tempo e de espaço. Actos de transfiguração”). 

Objetos de Luz” (não esquecer o outro “lado da laranja” - Marie Carré, a atriz, que certa vez banhou-se na luminosidade de “Agosto”, quer de Acácio’, quer de Jorge Silva Melo - também assumida como realizadora aqui) soa-nos como um espólio de ideias, e poderia ser um legado deixado, um livro que encontra sentido em filme, pronto a ser projetado através, disso mesmo, da luz. Talvez seja por isso que faça sentido nesse formato, ao contrário de uma página de papel, o filme revela-se na casa de Acácio de Almeida. A sua luz, a sua escuridão, o seu contraste e a sua criação.

O canto das mulheres embruxadas e dos homens ridículos

Hugo Gomes, 21.08.22

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As bruxas do leste na óptica de Tereza Nvotová (“Filthy”) não são mais do que vítimas de um prolongado e intrínseco Patriarcado, essa palavra instigadora das mais polarizadas facções; de um lado motivando um ativismo feminista e de desconstrução social, do outro provocando a quem não encara a “culpa masculina” como repertório extendido. Porém, a realizadora declara que na sua segunda longa-metragem - “Nightsiren” (vencedor do Leopardo de Ouro de Locarno, na secção "Cineastas do Presente")- o objetivo não é o de executar um enésimo statement, e sim “resgatar” os negros tempos de bruxarias e lançá-las a uma “fogueira” de reflexão quanto a um obscurismo hoje duradouro.

Tal como o cartão que abre o filme, a supersticiosidade ainda compõem quotidianos nos países do leste (neste caso a Eslováquia), levando todos os indivíduos, seja de género for, a serem reduzidos a peças numa maquinaria de opressão e de culto masculino. “Nightsiren” ostenta esse lado de cenário sociopolítico enquanto testemunhamos uma jovem retornada ao seu local de origem, cujo um conjunto de traumas (sejam de infância, sejam na sua suposta fase de emancipação) a perseguem, induzindo-a a uma investigação própria. Ao longo da sua jornada, por vezes impactadas com “visitas de fantasmas do Natal Passado” acaba por ceder a uma “teia” de misticismo e de misoginia entranhada.

Facilmente poderia-se insinuar a citação de um registo folk horror, ou dos ambientes atmosféricos que fizeram “The VVitch: A New-England Folktale” de Robert Eggers (por exemplo) no sucesso de culto hoje descrito, porém Nvotová não se interessa em trabalhar atmosferas (mesmo que aquelas sequências florestais apelem a um outro filme, daqueles habitáveis no esoterismo sexual e no xamânico, fazendo uso carnal e orgástico da fotografia de Federico Cesca) e sim na introspecção da sua protagonista (Natalia Germani) e no choque com uma comunidade sistematicamente medievalista.

Portanto esse lado de “cinema de género”, nunca verdadeiramente abraçado, assume-se como um disfarce para eventos maiores, a linguagem em que muitos artesãos dialogam (de George A. Romero a Wes Craven, de Ishirô Honda a Luis Ospina, sem esquecer obviamente de Jordan Peele) de forma a abordar as políticas e preocupações em ensaios “mais ou menos” figurativos que prevalecem anos após anos. “Nightsiren” é somente a tradição, não convém aclamar um “terror contaminado pelas causas / agendas sociais” [segundo essas vozes críticas], visto que é através do “cinema de género” no qual deparamos com a via, a lente abstrata para ver este nosso mundo. Tereza Nvotová fala-nos de sistemas, e o resto operam como os seus palanques de oração.

Vagabundos do mundo capitalista

Hugo Gomes, 27.09.19

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Realizado, escrito e protagonizado por Nadège Trebal, colaboradora de muito do cinema de Claire Simon, “Douze Mille” apresenta-nos Franck (Arieh Worthalter, “Girl”), um desempregado que é demitido do seu “trabalho ilegal”, mas que consegue uma nova oportunidade de “sustentar” a sua família num cargo distante. Por entre discussões com a sua mulher (interpretada por Trebla), eles chegam a acordo sobre o valor que motivará o seu retorno a casa: doze mil. Mas o dito “emprego” não é bem aquilo que Franck imaginava e por entre algumas aventuras e desventuras, vê-se emaranhado em esquemas e biscates ocultos. 

Como mencionado, Trebal nunca abdica do realismo encenado, e contamina este ambiente pastiche com uma instintividade musical sem receios de plasticidade. Nesses encargos, um filme como “Jessica Forever”, da jovem dupla Caroline Poggi e Jonathan Vinel (assim como outros integrados no manifesto ‘Flamme’), assumia facilmente esse lado de renegado do Mundo, enquanto “Douze Mille” debate-se constantemente pelo tom a ceder, ao mesmo tempo que paira em demasia nas fantasias masculinas, dando o ar de dúvida quanto à fidelidade da figura patriarcal. É certo que Nadège Trebal costura uma crítica a essa visão dita masculina quanto à missão de sustento familiar. 

Contudo, as mesmas nuances são deslocadas da jornada deste “herói”, onde uma lavagem obscura, diversas vezes pseudo-alarmista, desvia a nossa atenção das questões da precariedade ou do território do proletariado. Para além disso, o sexo, que como sabemos é de uma imperativa social a ser discutida, revela-se num impasse narrativo em todo este jogo de compromissos e cumplicidades.

Os Filhos de Isadora: dançando com a dor do mundo

Hugo Gomes, 15.08.19

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A sincronização do passado com um presente em movimento define este “Les enfants d'Isadora” (“Os Filhos da Isadora”) como uma espécie de “anti-biopic”, uma expressão contra o tradicionalismo da narrativa ponto sobre ponto. Para percebermos a veia central, o espírito estruturado deste objeto híbrido entre a ficção desencantada e destilada com os contornos performativos, devemos encarar um dos importantes capítulos na vida da dançarina e coreógrafa Isadora Duncan (1877 – 1927), considerada a percursora da dança moderna, que após a tragédia que a atingiu (um acidente de viação que vitimou os seus dois únicos filhos) tentou reunir os “cacos” e, não superando, mas incorporando a sua dor, criou assim a peça A Mãe (1923).

Esse canalizar da perda, o luto onipresente absorvido por um espírito morto é constantemente relembrado nesta nova obra de Damien Manivel, que segue o destino de quatro mulheres tocadas, cada uma à sua maneira, pelos gestos coreograficamente idealizados por Isadora 96 anos antes. Diríamos nós que em “Os Filhos da Isadora'' há um requer da emoção que quebra a estética fria de tendências documentais. Esse sentimento é aliado na performance, no processo de criação e no ecletismo com que o filme se desenvolve para emanar o seu mais triunfante ato.

Deste lado chega-nos à memória um dos grandes filmes da década passada, “Before We Go”, de Jorge Leon: o poder do “bailado” que aufere um certo tipo de exorcismo reparador, físico e espiritual, para com os corpos decadentes. Porém, se um falava de velhice e decadência, o fim dos dias que se avizinha, em “Os Filhos da Isadora” é o cerne que determina a maternidade e que as conecta perante um ato apenas.

Em quatro mulheres, só uma capta realmente o fardo com que Isadora catalisou a construção do seu monumento. Para a experienciarmos, há que esperar. A belíssima compensação (convém realçar) chega-nos no breu da noite, sob as luzes sem pujança e na silhueta disforme para quem o tempo não foi amigável. Sim, o tempo não é cordial nem simpatizante com a nossa dor e, por isso mesmo, este desfecho transmite uma mágoa avassaladora.

Uma estrofe de um singelo poema embarcado na dança interior, sobre os sentimentos alicerçados e de como a arte não é propriedade de nenhuma vivalma; apenas é vivida e degustada pelo tempo.

«Prazer, Camaradas!» Sou a revolução!

Hugo Gomes, 10.08.19

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Contradizendo a ideia romantizada envolto do 25 de Abril, o dia que assinalou a Revolução ainda hoje celebrada, não foi um dito “tampão” da ditadura e do pensamento patriarcal e algo arcaico que se vivia (e que se vive) neste país. O 25 de Abril foi uma ideia suscitada por um evento que se prolongou e o qual se debateu durante décadas, onde ainda hoje inteiramos os seus ecos e por vezes questionamos as suas ações como uma espécie de “negacionismo”.

Contudo, dentro dessa miraculosa insurreição, o fenómeno foi visto de perto pela imprensa estrangeira e outros curiosos que encaravam a “revolução dos cravos” como uma manifestação política-sociológica digna dos trilhos desbravados por Che Guevara na sua “libertação” da América Latina. E dentro desses mesmos curiosos eis que surgem quem deseja implantar uma ideologia política, que poucos anos antes era vista como uma convocação diabólica do comunismo. Pregando a igualdade e fraternidade entre o Povo e a abolição do território privado como ideais primários, a estafeta do comunismo por terras lusas, mais concretamente na zona alentejana, revelou-se mais fantasiosa que o próprio mito fabricado em volta do 25 de Abril. O audiovisual captou isso, por entre as matérias de jornais e propagandistas até ao Cinema.

Dentro desse território cinematográfico, encontramos deliciosamente a mais perfeita das analogias do quanto o Comunismo é somente um edifício de estrutura visível à beira da sua desmoronação, sentido que evidencia uma sátira terrível ao seu conceito, se não fosse o culpado da destruição dessa utopia, uma enxada. Thomas Harlan acompanhou a doutrinação alentejana em “Torre Bela” (1975) e foi o episódio de uma enxada, não o único, que iniciou uma cruzada à fragmentação de um oásis social prometido. Os gritos do camponês perante a corporativa que tenta arrancar-lhe o instrumento com promessas de partilha pela comunidade, demonstraram a despreparação de um povo desinformado e entranhado num conceito primário e oscilante de igualdade social. Esse foi o “fim”, no qual a fantasia dissipa-se e deixa todo aquele cenário a uma mera experiência social.

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E é através dessa experiência que José Filipe Costa cita a sua “Linha Vermelha” (2012), que por sua vez deixa ecos neste “Prazer, Camaradas!”, onde ensaia o registo documental com uma ficção embuste, pedindo aos protagonistas dessa doutrina rodeada de chaparros que repliquem os gestos de uma juventude inquieta e cedida a desejos longínquos politizados. Este não é mais um no território da docuficção lusitana, é uma possessão, uma invocação temporal que joga com dois formatos em prol de um objetivo definido. A reflexão de uma “inocência”, uma política ao domicílio que não desgrudou por estas bandas devido à já inteiramente consciência das suas “cobaias”. As causas são fáceis de apurar: o patriarcado enraizado, a submissão religiosa e dos costumes do arco-da-velha, elementos presentes nesta transposição que inibiram qualquer ideia anexada de outros territórios. No fim de contas, o otimismo dá lugar a uma perfeita geringonça operada por descrentes.

O episódio é concebido como um retrato pseudo-antropológico, enviesado num voluntário e fingido anacronismo. É uma atualidade em contramão com o passado retalhado, refém das memórias e da necessidade de rebelar com a nossa contemporaneidade tendo como justificação o fatal saudosismo. Perante tal observatório, José Filipe Costa orienta-se por entre um tom satírico, por vezes trocista para com esta gente empenhada, ou a tentativa de fintar os formatos estabelecidos pelo cocktail de formatos (a dita docuficção). Nesse último aspeto, o onirismo é por vezes convocado para implementar as suas armas (e salientar ainda mais o efeito de miragem quanto ao projeto de doutrinação), e a cinefilia de citação, como a colagem da mítica núpcia de “Une Femme Mariée” de Jean-Luc Godard (1964).

Mas no fim de contas, apesar do exercício implícito e do reforço à ideologia sem vingança, José Filipe Costa elabora um filme desafiante no nosso panorama. Não somente a nível cinematográfico, mas uma provocação de dois gumes aos revisionismos que tendem a persistir nos nossos debates políticos.

"Sobre Tudo Sobre Nada": apoiando nos 8mm como ensaio memoralista

Hugo Gomes, 18.08.18

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Será que o cinema consegue ser autobiográfico? Uma pergunta desnecessária, visto que a resposta parece ter sido encontrada há muito tempo, e a juntar isso, a intimidade com que depositamos nas imagens e nos seus simbolismos.

Sobre Tudo Sobre Nada”, de Dídio Pestana, é um filme que nos presta a condição da autorrepresentação, não inserida no valor visual, mas na estrutura deambulante com que coloca a sua experiência de vivente. É um relato filmado a Super 8 (durante oito anos) que por sua vez depara-se com um autêntico molde temporal, as memórias que se depositam e que surgem após o crepúsculo, é o Cinema a servir não como base de uma arte universal, mas um exorcizar das reflexões interiores. Sim, é um cinema no “Eu”, referindo ao “Eu” e que convida os “Outros” a remexer nessas reminiscências e pensamentos, que uma vez libertados são de domínio público.

Sobre Tudo Sobre Nada” é, como o título indica, um rol de experiências como é o nada extraído destas. Ora é a família imortalizada nas memórias e nos leit motiv que servem como atalhos às mesmas, ora são as amizades que gradualmente se convertem em meras visitas, ora as conversas de tudo e de nada (mais uma vez referência), e, por fim, os amores, sejam eles cinematográficos, geográficos e obviamente amorosos. Dídio Pestana apenas expôs-se, e fá-lo de forma egocentrista, mas igualmente serena, humilde quanto às suas capacidades de narração, um contador de história que vai para além das palavras, recorrendo às imagens que valem sobretudo folhas de diários inteirinhos.

É um bonito ensaio, sem com isto declarar o adjetivo como primário e infantilizado. Quem dera que muito do nosso cinema umbiguista tivesse este terra-a-terra das suas intenções, ao invés de cair por campos sem pássaros, silenciosos e pedantes na sua caminhada. Este é simplesmente um filme sobre tudo … e sobre nada. 

Milla: a não-ação como força narrativa neste espectro de «Nana»

Hugo Gomes, 16.08.18

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Já tínhamos percebido com “Nana” (2011), a sua primeira longa-metragem, que Valérie Massadian tenta repor um cinema completamente observacional, quase estudioso para com a figura imposta, e nesse termo, porque não mencionar – antropológico? No filme em questão, uma criança de 4 anos é deixada à sua mercê quando a progenitora falece. A protagonista, a tal Nana, desvanecida à sua ingenuidade / imaturidade, subsiste involuntariamente com o auxílio de preciosas ferramentas (tão férteis enquanto “pequenos”), a imaginação e a improvisação. Todas essas, levam à iminente negação do elemento morte. Aliás, em “Nana”, a morte é mais que território desconhecido, é um efeito ignorado, conscientemente inexistente.

Em “Milla”, todo o percurso perde o seu quê de experimentalismo. Já não estamos a lidar com “enfants”, mas sim, com jovens “sabidos”, provavelmente inconsequentes perante o mundo que vive, ou no seu caso, o panorama fabricado perante um otimismo sem par. A personagem-título, uma jovem de 17 anos, cai em redes shakespearianas, e o amor gerado leva-a fugir da sua anterior vida (sabemos lá qual é), que juntamente com o seu companheiro, sobrevive como pode, tentando desraizar a tal predestinada inserção sociológica.

Milla” ostenta essa visão distante, acurralando as suas personagens como cobaias de um qualquer tratado zoológico. Elas povoam a casa desabitada, convertendo num lar “akermeano” (união visual dos mosaicos com a tendência fílmica de Chantal Akerman, e não só, a não-ação da realizadora a servir de inspiração para a sua descendente). Porém, o dispositivo quebra, quando a tragédia abate a rotina conformista que se indiciava viciosa. Nesse termo, o piscar de olhos “akermeanos” afasta-se da realidade filmada e do formalismo e aproxima-se de uma certa centrifugação onírica, enquanto, simultaneamente, somos presenteados com réstias das pegadas passadas de Massadian. O espectro de “Nana” a quebrar o “gelo” imposto por esta “Milla”, ou será antes, “Milla” uma espécie de sequela de "Nana''?

Conforme seja a visão pretendida e requerida neste retrato objetor de consciências cinematográficas, a razão de todo este efeito é o acorrentar o espectador a um só olhar, o de Massadian e dos enquadramentos que essa retina contém.