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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Dídio Pestana: Um pouco sobre tudo, um pouco sobre nada.

Hugo Gomes, 13.02.19

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Dídio Pestana / Foto.: Hugo Gomes

Mesmo sendo “Sobre Tudo Sobre Nada” a sua primeira longa-metragem como realizador, Dídio Pestana já povoava neste universo cinematográfico há bastante tempo. Habitual colaborador e companheiro de Gonçalo Tocha (para além do sound design, ambos integram uma banda musical denominada TochaPestana), o agora realizador decide aventurar-se sozinho no Cinema pessoal, algo caseiro, o qual, através de 8 anos de filmagens, percorre toda uma jornada íntima e profissional da sua persona.

São as rodagens, os festivais, as amizades e os romances que não vingaram, temas e muitos, abordados e simultaneamente deixados no vazio. É por isso que entramos num mundo partilhável “Sobre Tudo Sobre Nada”. Aliás, será mesmo isso a essência dicotómica do Cinema.

Falei com este homem de mil ofícios (vencedor da primeira edição do Prémio do Público da KINO 2019 – Mostra de Cinema de Expressão Alemã), da sua suposta emancipação, até ao cinema caseiro pelo qual inspirou e sobretudo, sobre a definição exata (se é que existe) do Cinema com “C” grande.

Antes de começar, gostaria de perguntar se este projeto nasceu de uma intenção, ou a ideia do filme surgiu a meio do processo?

Sim, houve uma intenção inicial de fazer um filme, daí pegar na minha câmara e no Super 8 e começar a filmar. Foram escolhas iniciais conscientes. Já a duração, a de oito anos, não foi controlada por mim, lá está, por não ter um lado diarístico, o que implica que estive à espera de um momento em que me indicasse que não precisava mais de filmar este filme. E isso aconteceu em 2016, numa viagem ao Chile, na qual me apercebi de estar a filmar menos.

Mas durante este processo de registo, e tendo agora o produto final nas mãos, não se sente exposto? Aliás, é uma parte da sua vida que vemos no grande ecrã, incluindo as desilusões amorosas.

Não sinto isso. É óbvio que houve uma exposição, mas essa apenas deixei acontecer. O que está ali apenas não tive controlo, não selecionei o que deveria ou não deveria filmar. Parece estranho dizer isto, a verdade é que nunca experienciei a exposição, até porque no preciso momento em que começas a editar o filme – aquelas imagens, o meu íntimo, as pessoas envoltas, os amores (óbvio que tenho relações amorosas muito fortes ali) – tudo isso transforma-se em personagens na transcrição para a obra. E o hiato que houve ali, essa paragem ou abrandamento, serviram como distância necessária para com as imagens da edição, visto que eu próprio a fiz em conjunto com Rui Ribeiro. E na sala de edição, houve uma pré-seleção feita por mim e isso contribuiu para o afastamento. E está à vista de todos que todas aquelas imagens têm uma ligação afetiva para comigo. Então, o ato de cortar não foi um processo fácil.

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A decisão de filmar em Super 8 garantiu ao espectador esse sentimento de invasão a algo íntimo, a algo seu? Explique como surgiu esta ideia de filmar em tal formato.

A ideia de fazer um filme, apesar de à partida querer fazer algo intimista e próximo, que se aproximasse a esse cinema pessoal de Jonas Mekas ou de Ross McElwee. Depois é todo esse universo amador que o Super 8 proporciona. Aliás, o seu aparecimento permitiu que toda a gente pudesse pegar numa câmara, numa massificação das filmagens. Até porque foi a primeira vez que surgiram os ditos filmes caseiros.

À medida que ia filmando “Sobre Tudo Sobre Nada”, ia colecionando muito material caseiro vindo de outras famílias que deparava em diferentes esferas ou em leilões como o Ebay. É um universo muito interessante e cinematográfico, visto que nos inserimos num espaço muito íntimo. E para dizer a verdade, pegando na tua questão da exposição, foi através desses vídeos caseiros provenientes de outros que senti que estava a invadir qualquer coisa (há uma frase no filme que refiro a isso, “invadir privacidades”). Mas tinha que ter consciência de que estes filmes deveriam ser vistos, porque as famílias os libertaram para o Mundo.

Em “Sobre Tudo Sobre Nada” pretendia pegar em imagens pessoais e transformá-las num filme narrativo, uma história, neste caso diria 100% real, mas foi um processo em que permitiu. Como falei, interessa-me esse lado pessoal do cinema, assim como o cinema que se expõe, aquele em que vemos o realizador do filme ou o técnico de som, ou simplesmente a câmara cai acidentalmente. Para isso, diversas vezes dava a câmara a outros para que pudessem filmar-me, porque no fundo o Cinema é isso, uma partilha.

De certa forma, e visto que foi um colaborador assíduo do realizador Gonçalo Tocha, este “Sobre Tudo Sobre Nada” é uma espécie de emancipação?

Não há necessidade de emancipação. Quanto ao Gonçalo, já me dou com ele há vários anos, temos uma relação de amizade de 20 anos, conhecemo-nos no 1º ano de Faculdade e desde então trabalhamos juntos na música e no cinema. Na verdade, ele não me incentivou para o filme, mas sim nos últimos estados do filme, em que me aconselhava a despachar a montagem e arriscar a minha sorte no envio para Locarno. É normal que exista neste tipo de relações uma interajuda, uma troca de energias. Por isso, essa ideia de emancipação não faz sentido, porque na verdade é que depois disto continuarei a colaborar com ele, não me tornei realizador e não será agora. Voltarei aos meus trabalhos na área do som e do sound design.

… e  à TochaPestana, a vossa banda.

Sim, iremos [risos]. E na faculdade tínhamos uma banda que se chamava Malina, depois veio o Lupanar e agora o TochaPestana. Nós dizemos que essa banda será para sempre [risos]. Sim, a nossa relação de amizade extraviou para o lado profissional, o que é bom, porque nem sempre é fácil trabalhar com amigos, mas no nosso caso resulta.

Visto que referiu Jonas Mekas e tendo em conta que o cineasta recentemente nos deixou, gostaria de falar sobre a sua influência no seu trabalho.

No fundo, não foi o Jonas Mekas a pessoa que me fez abrir os olhos a este cinema pessoal, mas sim, o Ross McKewie, do qual vi quase todos os seus filmes numa retrospetiva no Doclisboa. Na altura fiquei fascinado com o Sherman 's March, aquela ideia de um filme de História transformar-se num diário pessoal e numa viagem pelo sul dos EUA. Por isso é que afirmo que foi o McKewie o responsável por esse despertar para este cinema.

Quanto a Mekas, o filme que mais me tocou, curiosamente, vi há pouco tempo, na altura em que começava a filmar em Super 8, e foi “As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”. Encontrei naquele caos todo, naquela ausência de cronologia / narrativa, uma história: a sua e da sua família.

Quando vejo filmes em Super 8, deparo-me com algo mais além do universo caseiro, e sim com o uso da montagem. E apesar de Mekas referir que não a utilizou, existe no filme uma ideia desta, um discurso sobre e acima de tudo existe música. É uma montagem através de datas que se vai montando como um puzzle na cabeça do espectador. É simplesmente um filme muito bonito.

É um cliché dizer isto, mas Mekas foi uma grande perda. O que ficou foi muito bom cinema para vermos e, acima de tudo, essa ideia de pegar no amador e transformar em cinema para além das quatro paredes de casa.

Queria questionar sobre o título – “Sobre Tudo Sobre Nada” – que acaba por ser bastante honesto e adequado ao tom do seu filme.

Foi na altura quando procurava por um título mas não sabia qual. Enquanto filmava, coloquei como provisório este e só percebi que era o mais correto quando comecei a montar. Através desse processo, apercebi-me que estava a querer abordar muitos tópicos. Na altura não entendi e fazia-me confusão, mas descobri que a essência do filme era mesmo essa, abordar tudo e mais alguma coisa e ao mesmo tempo não processar muito sobre elas. Até porque as coisas continuavam a andar e a vida continuava. No final, foi o título que me fez mais sentido.

O título é também uma referência a um diálogo que teve com a sua mãe.

Sim, há uma parte do filme que corresponde a um processo que não está lá, que foi o da memória familiar. Gravei algumas conversas que tive com a minha mãe e com outros membros da família de forma a criar um arquivo histórico. Algo que me interessava a mim, mas não só.

Mas é a pensar num filme que lançamos ideias e daí surge a construção do que acontece no final. Neste caso tentei aflorar conversas que não tinha no meu dia-a-dia, mas que foram possíveis através do processo de criação deste filme. Dei por mim a ter quatro horas de conversa com a minha mãe, algo que não aconteceria num dia normal.

Quanto a novos projetos?

Vou continuar a trabalhar no que me dá prazer. A colaborar com realizadores dos quais gosto, gravar som em rodagem, sound design. Aliás, é isso que eu gosto de fazer.

"Fado": porque tudo isto é triste, tudo isto é Lisboa

Hugo Gomes, 22.01.17

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A primeira longa-metragem de Jonas Rothlaender revela-nos uma história de ciúme e obsessão (contado com o auxílio da imaginação do protagonista) que tem como palco de fundo uma Lisboa filmada sob um olhar meramente turístico. Mas antes de desatarmos a apelidar este “esforço” de “europudim” perdido na tradução, vale a pena salientar a sensibilidade do realizador em procurar a medula desta cidade à beira Tejo. Como diz até certa altura uma das personagem habitantes deste “Fado”, Lisboa é uma cidade camaleão que se confunde com o estado de espírito da pessoa, enquanto alegres se transforma no recanto mais belo do pedaço, enquanto tristes a cidade veste o seu manto de melancolia e de tristeza derrotada.

Talvez seja a cidade ser tão nossa que nos faz sermos exigentes com o olhar estrangeiro de Rothlaender, mas vejamos, muitos dos realizadores portugueses filmaram Lisboa com os mesmos olhos, contando com Bruno de Almeida e o seu “The Lovebirds”, até João Pedro Rodrigues e o seu gesto desencantado com “Odete”, e Marcos Martins e a sua busca numa cidade sem identidade com “Alice”. O único pecado do jovem realizador é a sua ambição de filmar os lugares comuns de Lisboa e as utilizar a favor de uma história carente em psicologia, mas apta nas insinuações emocionais. Com isso junta-se uma certa miopia e não ir mais longe, e ocultado, o desejado de, por fim, integrar a alma de Lisboa, invocando o seu lado camaleônico ao extremo. Chegamos ao ponto de desejar o iminente desastre.

A obsessão, o ciúme, a ameaça de crime passional preenchem a intriga, que nos dá o ar de “faz-de-conta”, de insuflação automática ao serviço de um coprodução. Mas nem isso, “Fado”, esse sentimento que só os portugueses parecem conhecer, leva o filme ao desastre. Apenas precisávamos mais de paixão no argumento, e menos fixação no cenário.

Choose youth ...

Hugo Gomes, 08.02.16

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Baseado no primeiro livro do escritor Clemens Meyer, “Enquanto Sonhamos” (“Als wir Träumten”) é a jornada de um grupo de jovens (Dani, Paul, Rico, Pitbull e Mark) que tentam manter-se imutáveis face às mudanças do mundo, até porque a ação desta história decorre logo após o fim do RDA, período em que o destino destes “prodígios” se alterou. Derivado a isso, temos uma juventude inconsequente, iludida por promessas ultrapassadas de um país que já não existe, e cujos espectros teimam em ser invocados. Constantemente mergulhados num submundo de drogas, álcool e violência, este “quinteto de cordas” é caoticamente conduzido à delinquência e a consequências maiores que marcarão para sempre as vidas de uma anteriormente aclamada geração de ouro.

Do ascendente cineasta Andreas Dresen (que com o seu “Halt auf freier Strecke”, venceu um prémio na secção Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2011), “Enquanto Sonhamos” apresenta um registo narrativo que perpetua um constante confronto cronológico (os diferentes espaços temporais são conotados através do tratamento da sua fotografia). Tendo elementos base (por vezes encarados como lugares-comuns) sobre a autodestruição juvenil, o realizador parece partilhar a mesma visão destes jovens protagonistas, cujos atos irreversíveis são ilustrados como fantasias eufóricas percutidas pela música techno. Para quem julgava existir aqui um formato quase “Trainspotting”, o erro poderá ser fatal, até porque Dresen “veste” o seu filme com uma moralidade subliminar em relação às suas personagens, mais que um acolhimento dito ambíguo que a intriga poderia suscitar.

O erro, é que com isto perde-se uma agressiva análise crítica de uma geração perdida, com reflexões a uma nação reunificada, rejuvenescida mas ainda traumatizada pelas memórias passadas, e ganha-se mais um episódio coming of age erguido com admiração incontestável deste universo. Depois temos um ligeiro maniqueismo que infesta a caracterização das personagens, que por mero infortúnio (ou não) dificilmente se sobressaem da esquematização, nunca trespassando a mera promessa. Tinha potencial!

"The Lies of the Victors": o jornalismo de investigação em debate

Hugo Gomes, 28.01.16

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Fabian Groys (Florian David Fitz) é um promissor jornalista de uma revista política bastante influente na Alemanha. O seu último trabalho consiste em investigar um suposto escândalo que envolve as Forças Armadas e a forma como lidam com militares incapacitados. O chefe de Groys tenta impingir-lhe uma assistente para que possam formar uma equipa, mas egocêntrico como é, Groys faz de tudo para se livrar dela. Como tal, envia-a no trilho de uma notícia que o próprio considera insignificante. Sem saber, essa mesma reportagem, banal e sem interesse, tem ligações ao caso das Forças Armadas que investiga, sendo aos poucos desvendada uma complexa teia de conspirações, propícia a um artigo jornalístico de exceção.

“As Mentiras dos Vencedores” (“Die Lügen der Sieger”/”The Lies of the Victors”) possui uma temática pertinente e bem atual que merece um prolongado debate após o seu visionamento. Tratando-se da enésima obra a reafirmar o papel crucial dos Media na opinião pública (o chamado estatuto de Quarto Poder), e das fragilidades deles perante a manipulação dos lobbies, o novo filme de Christoph Hochhäusler reflete na célebre frase do poeta Lawrence Ferlinghetti (“A História é feita com as mentiras dos vencedores“) um trabalho de pesquisa ocasionalmente frontal. Esta mesma frontalidade, que embate das Forças Armadas Alemãs como principal alvo, limita toda a crítica social, até aqui construída apenas como uma “análise interna”.

Mas vamos por partes, a condução do tema, seja de que natureza for, deve sim, possuir a emergência do nosso olhar. Porém, e como thriller, este “As Mentiras dos Vencedores" não sabe transpor na narrativa uma forma de atacar o seu alvo. Nessa narrativa, vincada na senda de outros filmes provocantes como “All the President's Men” e até mesmo o recente “Spotlight”, Hochhäusler demonstra uma incapacidade em impor a sua voz de revolta, o que é sublinhado na (falta de) motivação das personagens, como se a sua construção fosse demasiado encarecida de maniqueismos pueris ou de moralidades subjacentes (a evidenciar na forma como o protagonista é caracterizada; um arrogante misógino com vício no jogo).

Ainda na sua natureza de thriller, é interessante ver os códigos “hitchcockianos” que o realizador constantemente cita, entre os quais um clima de mistério nas tensas sequências, mais do que uma preocupação na concepção do próprio twist. Aliás, a dispensa dessa reviravolta evidencia a forma como este thriller é conduzido, nunca se assumindo no território do subgénero, mas sim usando esses elementos na sua noção crítica. E é nessa crítica que Hochhäusler interessa-se plenamente, nem que para isso prejudique a narrativa. Um dos casos mais flagrantes é a seleção de sequências desfragmentadas com a imprecisão do raccord, um exercício que nos indica o quão interessado está o autor no tema, mais do que propriamente no filme.

Kreuzweg: a Via Sacra de Maria

Hugo Gomes, 01.03.15

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A religião é tida como um assunto delicado. Qualquer abordagem a ela é automaticamente uma declaração de guerra, seja ela séria ou cómica o resultado é inevitável. Enquanto falamos exaustivamente no nosso quotidiano sobre Estados Islâmicos e medos racionais ou irracionais do extremismo muçulmano, é curioso assistir um filme como Kreuzweg (As Estações da Cruz), um retrato sufocante sobre o fascismo religioso e a sua influência na nossa sociedade. Tudo isso esquematizado na personagem de Maria (Lea Van Acken), uma adolescente que tem a mais fatal das decisões: enveredar pelo caminho de Cristo, sacrificando o seu corpo em prol da preservação do seu espírito.

O amor a Deus não é transmitido ao espectador, ao invés, a intolerância e a sobreposição de pensamentos, que de certa forma irão influenciar a jovem, dedicada a morrer para que o seu sobrinho de quatro anos, diagnosticado com autismo, possa proferir as primeiras palavras. É penoso assistir a todo o processo de santificação, baseado nos ensinamentos mais fundamentalistas da Igreja Católica, mas Dietrich e Anna Buggermann tornam a experiência cativante através de uma narrativa composta por 13 longos planos, todos eles alusivos às 13 estações de Via Sacra de Jesus Cristo. Quanto mais avançamos na narrativa, mais conflituoso é o dilema de Maria, sucumbindo aos ideais religiosos, fortemente apoiada pela sua mãe intolerante.

O primeiro plano, cerca de 15 minutos sem cortes nem mudanças de planificação, serve como introdução a esse "mundo" fechado, guiado pelo sofrimento e pela recompensa divina que é uma benevolente vida pós-morte. O padre refere-se a esses sacrifícios como um modo de vida correcto e castiga severamente o júbilo e a melodia como invocações satânicas. Maria ouve atentamente o sermão e confessa-se interessada no sacramento. A partir daqui, como espectadores, ansiamos por uma salvação divina da doce menina dessas correntes teológicas, temos esperança que a martirologia seja "sol de pouca dura", mas a contradição às nossas expectativas dará lugar a um dos finais mais penosamente satíricos. O par de realizadores aborda as dúvidas da crença e provoca uma dualidade no seu desfecho, porém, não poupam em castigos silenciosos e subliminares.

Kreuzweg é um filme desencantador, duro de assistir, mas inventivo na sua alusão narrativa. As personagens são eficazes na sua provocação, aptos para leituras que de certa forma transmitem a atualidade do nosso "Mundo", cada vez mais à mercê das influências religiosas. Mas acima de tudo é um filme que ilustra hipocritamente a liberdade de escolha dos nossos filhos, mas com um pé sob a influência familiar e social. Por fim, tendo em conta a expansão do chamado cinema cristão, esta será uma obra dificilmente comercializada em território norte-americano, enquanto em Portugal a sua distribuição parece demorar.

Falando com Till Kleinert, um jovem na companhia do "Der Samurai"

Hugo Gomes, 03.02.15

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Der Samurai (2014)

Em “Der Samurai” (“O Samurai”), Till Kleinert construiu um filme barroco, alusivo e metafórico que joga com diferentes elementos do folclore alemão e não só. É uma obra complexa que evidencia um talento obscuro, visto ser a segunda longa-metragem do jovem germânico.

O Cinematograficamente Falando … teve a honra de conversar com a revelação, tentando com isto, desconstruir a sua obra, identificando as suas marcas. Kleinert revelou-nos mais que isso: os seus projectos, os seus medos, fantasias e a sua adoração pelo género do terror. No final, deixa mesmo algumas recomendações…

Esta foi a sua segunda longa-metragem. Como foi a experiência?

Não é muito diferente de fazer curtas-metragens, apenas o processo é maior e o trabalho mais contínuo. Para tal, temos que aprender a negociar a nossa energia, porque gravar catorze horas diárias torna-se bastante cansativo após várias semanas. Por isso eu tento não ficar tão exausto, por mim e para a equipa de rodagem. De resto? Não sei, costumo ser feliz quando estou a trabalhar num filme. Mas sim, basicamente é uma experiência idêntica a de uma curta-metragem.

Como surgiu a ideia para “Der Samurai”?

Os meus projetos surgem através de uma imagem chave, como uma situação ou simplesmente uma imagem que tento configurar durante o processo de criação. Aí tento perceber em qual género encaixa e que tipo de filme desencadeará. Por isso eu não sei nada sobre a história. Esta imagem [“Der Samurai”] surgiu numa viagem de comboio. Imaginei uma pequena cidade alemã, meio rústica, meio moderna, rodeada por uma floresta e no meio uma figura sombria a vaguear por essas mesmas ruas a ameaçar e a desafiar as autoridades. Apenas apareceu, sem que  eu soubesse o que significa ou porque estava lá. Vi essa imagem e pensei: “isto é fantástico, gostaria de ver esta figura a percorrer essas ruas e vilas”. Por isso tentei associá-la a uma história que funcionasse. Foi mais ou menos isto que se sucedeu.

Porquê uma espada japonesa?

Essa imagem apareceu-me visualmente semi-formada, por isso tentei configurá-la, assim como a espada japonesa, que também surgiu. É como sonhar. Nós temos uma razão racional para o sonho? Podes tentar sempre analisá-los, mas isso não significa que haja razão para tal. Então acho que durante a minha análise, existe qualquer coisa envolvente nas espadas e outras armas que atraem pessoas marginalizadas. Como na Alemanha as pessoas estão no pico da ira e tem que libertá-la de qualquer forma, talvez em destruir algo ou agredir alguém que odeiam.

Podia procurar um artigo de jornal sobre o tema, mas provavelmente não existiria uma katana no meio. Penso que a espada funciona como um combustível, uma fantasia fetichista da vingança. Também porque joguei muitos videojogos enquanto era mais jovem, principalmente RPG (Role Playing Games) japoneses, onde os vilões são tipos grandes de cabelo comprido e sempre munidos com espadas. Quando pesquisei no Google, encontrei traços que gostaria de expor no filme. Mas pessoalmente, interpretando toda esta ideia do filme, se a personagem “heróica” somos nós, o outro tipo é uma representação selvagem de nós mesmos. É algo muito próximo daquilo que eu “sonhei”. Bem, novamente refiro, não existe algo racional em toda esta combinação de elementos.

A representação do lobo, tem influências com as fábulas alemãs?

Sim, obviamente. É como o Capuchinho Vermelho para mim. O lobo é supostamente um símbolo de toda a repressão afetuosa. A minha interpretação sobre essa fábula é que há sempre um homem (ou alguém) que pretende ter sexo contigo. Tal retrato já fora mostrado em “The Company of Wolves”, de Neil Jordan. Nesta versão o suposto lobo é um homem que tenta tirar a virgindade dela. Essa virgindade é o seu isco. É um símbolo de algo selvagem, uma tentação, um impulso que corre por excitação e, sim, de agressão sexual. Mas ao mesmo tempo neste filme queria ligar isso ao realismo, factos que estão a acontecer na Alemanha neste momento. Por isso refiro o regresso dos lobos à Alemanha. Estiveram quase desaparecidos por mais de 100 anos e agora estão a retornar às fronteiras europeias. 

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Till Kleinert

Li num jornal acerca deste regresso e o medo das pequenas aldeias e cidades destes, visto que receiam que ataquem os animais. É algo de verdadeiro que está a acontecer. E é engraçado porque na verdade o que os ajudou a estabelecerem-se no território foram as bases soviéticas abandonadas, mas que continuam proibidas para os cidadãos, talvez devido a armamento ou outro equipamento militar que possa funcionar. Por isso, essas bases vazias são perfeitas como tocas ou territórios para os lobos e estão em zonas remotas, afastadas da população humana. Ao mesmo tempo existe um medo irracional em relação ao lobo e tal continuar existir mesmo nos dias de hoje. Isso foi um elemento que quis transmitir no filme.

É como o regresso do “Bicho-Papão”?

Sim, é como fosse o regresso da repressão, de algo que se tentaram livrar e que não conseguiram.

Por que razão não se produzem muitos filmes de terror ou fantasia na Alemanha?

Sinceramente, não sei. Provavelmente tem a haver com o sistema de financiamento na Alemanha. Nós quando queremos fazer um filme seguimos para uma agência governamental, para financiar o projeto. Por isso, para receber o financiamento, somos avaliados por este grupo de pessoas que decide o que se deve ou não filmar. Talvez a razão do género do terror não ser muito comum na Alemanha seja um ponto de vista político. Mais facilmente são aceites filmes dramáticos de cariz sociológico ou outras temáticas mais sensíveis. Penso que existem problemas a nível sociais, então o terror lúdico não é muito aceite, sendo que é necessário rever se o projecto funcionará e se o espectador conseguirá obter algo desse visionamento.

Acho que é um assunto muito político. Mas mesmo assim, nós [realizadores] temos que ter a certeza do porquê é que queremos fazer isto. No meu caso, é um filme com contornos de fábula dos irmãos Grimm. Por isso tenho que ser preciso na razão porque é que tem que ser tão negro e sangrento. Para isso temos que fazer um grande texto argumentativo. Normalmente eles dão algum dinheiro pela ideia, mas no geral é complicado, este género é uma ideia algo suicida.

Quais são os seus projetos para o futuro?

Estou a trabalhar em algo agora, pelo qual estou muito entusiasmado. Vou filmar um episódio-piloto de uma futura série que ocorre toda dentro de uma casa, um complexo, daquelas grandes casas que se pode encontrar nos limites das cidades. Dentro dela temos várias personagens, famílias todas elas diferentes, que possuem as suas tramas e conflitos. Quero avançar com algo sobre gerações, diferentes tempos e até classes sociais. É um projeto pessoal, visto que eu cresci numa destas casas. Também porque estou me a tornar num cineasta. Terminei o meu segundo filme e preciso urgentemente dinheiro para iniciar novas produções, mas também quero tentar apostar em coisas novas, demonstrar que não sou aquilo que aparento ser, nem aquilo que os outros pensam que sou. Basicamente é isso, uma nova etapa.

Você gosta de filmes de terror?

Sim, certamente.

Quais as suas preferências no género?

O meu favorito? O meu favorito de todos os tempos? É o “Texas Chainsaw Massacre”. Penso que é um filme perfeito. É um daqueles filmes que não consegue alterar nada para se tornar melhor. É o que eu penso. Adoro tudo nesse filme, até mesmo ser pouco cerebral ou não ser uma grande produção. Mas existe algo nele que me faz sentir tão certo, ao mesmo tempo perigoso, é um pesadelo. Tal como um pesadelo que eu não posso acordar. É perfeito, é tão niilista. Eu procuro sempre um filme que me faça sentir isso e o “Texas Chainsaw Massacre” consegue. É isento de esperança. É tão humanamente feio no geral. Eu adoro! 

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De Samurai (2014)

Por acaso, adoro vários filmes de terror, “The Exorcist” é um dos grandes! “O Sacrifício” (“Wicker Man”) é espantoso! E todos eles são dos anos 70. Faz-me pensar que essa foi a década de ouro do cinema de terror. Aí surgiu uma data de filmes, todos eles horríficos, mas nenhum seguindo uma fórmula concreta. Isso é algo que sinto faltar ao terror moderno. Sinto que nos dias de hoje tenta-se recriar as fórmulas. É como uma geração pós-Scream, toda a gente sabe as regras, mas ninguém as quebra, apenas trabalham com base nelas Eu não gosto disso. O que gosto é de ir ver um filme do qual eu não estou à espera do que vai acontecer. E pretendo ver algo chocante e surpreendente nesse termo. Algo não formatado. 

Mas ainda existem coisas boas nos tempos de hoje. Por exemplo, o "Kill List- Uma Lista a Abater”. É algo diferente dos títulos atuais, mas funciona. O que nos assusta verdadeiramente é aquilo que não conseguimos ver e nisso ele trabalha bem. Porém, eu não sou adepto do filme de psicopata, como o “teen slasher”, em que este passa o filme todo a matar pessoas. É divertido, mas não faz o meu género. E aqueles adolescentes? É cínico, mas sentimos que eles merecem. São tão estúpidos! Mas há exceções, como o “It Follows”. É o melhor slasher movie dos últimos anos. Muito bem feito, muito persuasivo. Vale a pena. Mas bem, isto tudo para dizer que adoro filmes de terror. 

Penso que não fiz um filme de terror. O meu filme não é assustador, tem elementos dignos do terror, mas não assusta. Mas também o “Wicker Man” não é verdadeiramente assustador, mas a ideia em si é pavorosa, aquela fobia gerada pelas personagens.

Animais "fornicadores"

Hugo Gomes, 02.02.15

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Num hotel de luxo, dois funcionários vivem um amor desvairado, a harmonia encontrada entre ambos é inconstante, mas essa inconstância soa como uma anarquia em todo o estabelecimento. O hotel vê com maus olhos esta relação algo autodestrutiva.

Em “Love Steaks”, de Jakob Lass, existe um impulso animalesco que o torna primariamente sedutor. Eis um filme que remete-nos à linguagem de uma nova geração de cineastas. Geração, essa, que nasceu com a proliferação dos videoclipes e da sua influência no cinema, também é esta a geração que cresceu com a ousadia e o minimalismo das produções MTV. Mas Lass evidencia mais do que preguiça em ilustrar o retrato frenético e de cariz adolescente. Invés disso, filma uma história recorrente à química dos seus protagonistas, da bizarria dos seus comportamentos e da sua cumplicidade alienada. Mas apesar do toque, fica sempre longe dos lugares-comuns ou da tentação de se rever numa trama "mainstream".

“Love Steaks” é uma panóplia de gestos, é o embate entre dois seres deslocados do seu meio ambiente, perdidos entre o rigor de um sistema estabelecido e libertinos na respetiva aura (quase soando como uma metáfora coming-of-age, embrulhado com um retrato social alusivo). Lana Cooper e Franz Rogowski expõem essa mesma química sem remorsos de pudor, sem timidez nem receio da eventual humilhação. As suas entregas interpretativas funcionam como combustão neste filme minimalista que procura ser o que todos pretendem: uma rebeldia adolescente evidente da qual não é possível fugir.

Porém, é curioso o interesse dado pelas suas personagens e a relação de ambos, tão inatural como "perfeito". Na verdade, tudo se resume a um golpe de sorte do seu realizador, Jakob Lass, que filma por instinto e usufrui de uma linguagem leve, revoltante aos modelos aristotélicos do cinema, ao mesmo tempo que aspira os códigos do espírito jovem. Um exercício de dinamismo e aptidão!

No desejo da catana ...

Hugo Gomes, 27.01.15

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Till Kleinert transformou o seu “Der Samurai” (“O Samurai”) numa variação aos contos dos irmãos Grimm, o regresso da floresta negra como magnetismo do infortúnio e a figura do lobo como um ser originalmente demoníaco, acompanhado por desenganos e de falsas juras. Mas o tratamento recebido destes elementos fabulistas tem muito menos de fantástico e mais de intimista. A floresta, esse poço de mau agoiro, é metaforicamente servido como um um "armário" interior, um canto remoto da perversão e da mais negra fantasia, onde reside um "monstro" que anseia ser libertado. Por outras palavras, a ideia intrínseca da Caixa de Pandora.

Sendo evidentes a natureza desses monstros e muito mais dessas vítimas, o jovem cineasta tem a capacidade de direcionar o olhar do espectador para os locais certos e, até certa altura, esconder os seus verdadeiros propósitos em prol de uma fachada, que se dá pelo nome de alusão. É no fundo o revisitar da história do caçador e do "lobo-mau", onde a perseguição é distorcida em toda a sua jornada. Mas quem na verdade é a besta e quem é o homem será decidido nesta corrida macabra pelo tempo. Kleinert incute o estilismo gráfico evidenciando mais essa referida aura fabulista e aposta, sobretudo, na figura antagonista interpretada por Pit Bukowski, que para o espectador mais atento é uma fusão de referências, quer cinematográficas, quer sociais. Trata-se de um "Ed Gein", um trasvestido personagem saído quer do negro imaginário de Thomas Harris, quer do signo cinematográfico de Tarantino ou Jarmusch. "Did you like what you see?" - frase proferida pelo personagem e arrancada diretamente de “The Silence of the Lambs” é um dos fatores confirmantes dessa dita hibridez de menções.

O nosso "herói" (Michel Diercks) é um confrangido homem que luta por uma posição na sua comunidade. Porém, é evadido pelas mais negras fantasias. Visto assim como o caçador desta fábula concentrada, “Der Samurai” elabora um jogo de químicas, a empatia entre o assassino e o nosso protagonista, confrontados algures entre uma batalha psicológica e gráfica. O grande clímax dá-se com a dança dos torturados, a libertação de uma prisão consequencial, dando seguimento ao estilismo quase metafórico das imagens transmitidas por Kleinert. A licantropia, a diferença individual é vista aqui como alegorica homossexualidade, o ultimo reduto da besta e da consagração do herói determinado a enfrentar os seus medos mais pessoais através da ira da catana.

Der Samurai” funciona assim como um exercício de estilo, uma “mordida” voraz no cinema fantástico alemão, ao mesmo tempo adquirindo-se numa representação imaginária, quer intimista e até social, de um país confrontado com os seus medos mais primitivos, ou no ponto vista mais pessoal, o hino à emancipação de espírito. Uma experiência surrealmente sedutora.