A tragédia da ouvinte
Mon Crime (François Ozon, 2023)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Mon Crime (François Ozon, 2023)
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As memórias são mais que meros refúgios em “Été 85”: São encarcerados, condenados às suas rígidas sentenças. Por entre a fotografia granulada de Hichame Alaouie, François Ozon parte de uma confissão – “Eu cometi um crime” – mas qual crime terá cometido o jovem de tenra idade Alexis (Félix Lefebvre)? A sua narrativa quase erudita e esforçada em atingir um certo tom de lirismo é o que basta para tentar (sublinha-se) convencer-nos da sua inteira culpa, para o espectador não será mais que uma hipérbole de emoções, uma prestação de contas para com o próprio relato em si.
É que para Alexis, o crime cometido foi a rendição das emoções, o constatar que o amor não tem género, nem mesmo direção, e mais que tudo, prazos de expiração. “Été 85” é o habitual conto de paixões repentinas sob o calor da estação e ao sabor das brisas marítimas, é um ensaio proustiano e saudosista para com aquelas mesmas memórias. A recolha e seleção destas faz-se por adereços, músicas e gestos ultrapassados, “pirosidades” contextualizadas que nesta tradução se convertem em hinos de luto, despedidas e reconciliações, em jeito de morbidez tumultuosa.
É o “Sailing” de Rod Stewart, por exemplo, a incidir-se como valsa ao luar, o réquiem do fim da adolescência e a vénia à maturação, um ciclo reconhecível e de fazer inveja a qualquer veterano que se preze (porque o inevitável desejo íntimo é que o tempo voltasse atrás em uma mera cantiga de “quem me dera ter novamente 18 anos”). Mas a impossibilidade desse retrocesso leva-nos a olhar com algum ceticismo às juras amorosas de Alexis ao seu Adónis antecipado, David (Benjamin Voisin), uma condescendência do nosso lado que reforça o exagero desta historieta de burgueses.
À sua maneira é como recuperássemos “O Meu Caso”, de Manoel de Oliveira (1987), aquelas interpolações de egos em prol de um umbiguismo caótico. São as futilidades que operam como o vetor do mundo, para Alexis o seu drama é um cataclismo iminente, para o seu redor é somente uma miopia resiliente. Contudo, o relato do protagonista é também a sua afirmação num pré-construído abrigo intelectual e criativo, até porque o nosso apaixonado anseia ser escritor, a seu jeito, invocando os profundos devaneios de um certo cinema francês que sonha com palavras imperativas sobre as suas respetivas imagens.
Para Ozon, estas memórias retratadas têm um propósito, o de aliciar idiossincrasias dos seus heróis, dos velhos e passados mestres do seu “mundinho” chamado cinefilia. É por essas e por outras que encontramos uma relação algo abstrata entre as palavras e os seus significados, uma projeção e, consequentemente, uma materialização dessas mesmas correspondências que tão bem cabiam na “palma” de Truffaut.
Sim, há um toque “truffauteano” (o adjetivo nunca pegou e pelos visto nunca vai pegar), mais do que as comparações com o êxito de “Call me By your Name” (trocando aqui o fluvial pelo balear, mas mantendo o bucolismo) que tem sido erradamente associado. É Ozon, a deixar de lado os seus últimos fracassos para apostar naquilo que tão bem faz, mimetizar percepções e venerações como de ditos e ocultados.
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Falou-se aqui de um “Call Me By Your Name” francês, sendo que a única coisa que tem de comum (para além do óbvio romance homossexual) é o saudosismo para com a época descrita, transformando músicas pirosas em marcos da nossa emotividade e paixonetas estivais por amores shakespearianos com a sua pitada de macabro. É um (pequeno) grande passo de Ozon após o certinho e igualmente deslavado “Grâce à Dieu”, evidenciando aqui um jeito algo tosco em salivar por velhos temas existenciais e eternos gestos autorais. É um filme com a sua personalidade, mesmo que por vezes seja levado pelas ondas ("como uma onda no mar", já dizia o 'outro')
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Ozon cita Cronenberg para dar-nos um salto de cabeça. O terceiro acto é a "morte do artista".
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Não caiam no erro, cinema erótico não é o equivalente a pornografia, e sim uma arte que acima de tudo se deixa deslumbrar pela luxúria, pela sensualidade dos corpos e a aura tentadora que emerge nelas. Uma antiga relação amorosa que remonta-nos aos primórdios do cinema, mais concretamente com os testes de footage de Eadweard Muybridge (1884 - 1887), a partir daí o cinema ficou fascinado com a versatilidade e a beleza dos corpos humanos, da sua delicadeza até à sua robustez, tentando combater as eventuais censuras em prol desse adultério para com os bons valores. Mesmo nos dias de hoje o cinema erótico é visto de certa forma como uma minimização da pornografia, mas enquanto esta evolui para territórios mais jubilantes e menos cinematográficos, o erotismo se comporta como um género rebelde, pronto a causar controvérsia, e sobretudo a minimizar a distância do seu público para com as suas mais intímas fantasias e à temática sexual que a sociedade tanto quer esconder.
E como o cinema erótico tem tanto para mostrar, obras cinematográficos ímpares de gerações, estilos e narrativas, o Cinematograficamente Falando … em colaboração com Nuno Pereira do site Cinespoon (ver aqui) e Roni Nunes, João Miranda e André Gonçalves do C7nema (ver aqui) decidiram elaborar um Top das Melhores Filmes Eróticos até à data, com influência da estreia de Fifty Shades of Grey. Uma lista que reúne os mais diferentes mestres da cinematografia, desde Cronenberg a Verhoeven, Ozon a Bertolucci, todos eles contribuíram para a imensidão da onírica luxúria e a fantasia pessoal de cada um. O imaginário do espectador poderá ser assim levado para fora dos limites da perversão ou até mesmo da divindade sexual.
#10) Les Anges Exterminateurs (Jean-Claude Brisseau, 2006)
Um híbrido entre fantasia masculina com autobiografia, metaforizando as memórias do seu autor, Jean-Claude Brisseau, sob pseudónimos e muito erotismo onírico. Les Anges Exterminateurs é o apogeu de uma busca interminável de um homem pelo que mais de divino possui a mulher, o derradeiro orgasmo. No segundo capítulo da trilogia Tabu, nunca os corpos femininos obtiveram tamanha sensualidade e intimidade. Um retrato intimista, a segunda chance de um realizador "humilhado" em praça pública, mas mesmo assim, apaixonado pelo seu símbolo de tentação. Hugo Gomes
#09) Shame (Steve McQueen, 2011)
Steve McQueen navega em território erótico, porém aquilo que conseguiu cometer foi um ensaio frigido da ninfomania. Em Shame não temos fantasias, devaneios, nem sequer "mundos encantados", tudo é retratado num quotidiano obsessivo e desesperado. Michael Fassbender é essa loucura do degredo em pessoa, o "peão" em queda livre para as profundezas da luxúria. Para além do seu marcante desempenho, temos ainda uma frágil Carey Mulligan como boneca de desejo. Vergonha é dos poucos filmes que aborda a ninfomania como a doença que é. Hugo Gomes
#08) Crash (David Cronenberg, 1996)
O desejo é fluído. Desliza sobre as geometrias urbanas e concentra-se nos pontos de contacto entre as pessoas. Quando as linhas que os automóveis desenham sobre estas superfícies se cruzam, este explode em estilhaços como os vidros e os ossos. Crash é um filme sobre estas explosões e sobre a sua procura. Numa sociedade que pretende formatar as interacções pessoais e o desejo ele próprio, este manifesta-se por vezes de formas surpreendentes. João Miranda
#07) La Bête (Walerian Borowczyk, 1975)
Esse clássico absoluto e escandaloso do aliciante cinema erótico dos anos 70 trazia uma fantasia, uma sensualidade e um humor que praticamente não se encontra no cinema actual. A acção se precipita quando uma inocente beldade da nobreza inglesa vai à França conhecer o noivo ao qual estava prometida. Ocorre que este é estranhíssimo e o castelo do seu sogro esconde mais do que os retratos de uma geração nobre na parede. Para além de um erotismo cheio de classe, tem uma inteligência invulgar, um enorme sentido de humor e uma escandalosa associação da sexualidade humana como uma bestialidade atávica, o suficiente para deixar os conservadores da altura de cabelos em pé... O autor da façanha foi o polaco exilado em França, Walerian Borowczyk, responsável também pelos magníficos Contes Immoraux, que lançaria dois anos depois. Roni Nunes
#06) Nine 1/2 Weeks (Adrian Lyne, 1986)
Só por ter sido o principal difusor da gastronomia corporal como preliminar, já merecia um lugar neste top 10. Que Nine 1/2 Weeks tenha de facto uma história realista e hipnótica de uma relação que se vai tornando obsessiva por detrás dos seus grandes momentos mais badalados – realço, para além da icónica sequência gastronómica, o "strip" igualmente icónico de Kim Basinger ao som de "You Can Leave Your Hat On" de Joe Cocker - é um pequeno milagre. André Gonçalves
#05) Secretary (Steven Shainberg, 2002)
O Amor é polivalente. Perante as imagens culturais e mediáticas que nos limitam, por vezes é difícil compreendê-lo sem o julgar ou o considerar bizarro. "Secretary" é uma história de amor diferente, que surpreende tanto os espectadores, como os seus participantes. Um filme que recusa o amor romântico que enche os ecrãs, os livros, as músicas e os postais, mas que recusa também qualquer etiqueta. João Miranda
#04) Lucia e El Sexo (Julio Medem, 2001)
O cinema latino é mais facilmente associado a tópicos mais "calientes" é certo, mas Lucia e El Sexo destaca-se dos demais, ao usar máximo efeito a sensualidade dos atores (Paz Vega emergiria deste filme como uma das grandes revelações latinas da década), o ambiente envolvente - neste caso, a paisagem mediterrânica - e a sua meta-narrativa fantasiosa, como estímulos altamente irresistíveis, e tão eróticos como intelectuais. André Gonçalves
#03) The Dreamers (Bernardo Bertolucci, 2003)
Em pleno verão quente de 68, durante as manifestações estudantis em paris, uma tríade (estudante americano, casal de irmãos franceses) nasce. Em The Dreamers temos verdadeiramente o que a cine-arte devia ser. Sob uma temática altamente relevante, é pintado um quadro, com Eva Green como musa inspiradora, uma verdadeira Venus de Milo. Nuno Pereira
#02) Swimming Pool (François Ozon, 2003)
Toda a inteligência de François Ozon é expressa nesta obra. O centro é a relação peculiar entre uma escritora inglesa que procurava inspiração na sua casa no sul de França, mas em vez disso encontra inquietação nos braços da sua estranha filha. Aqui o destaque maior recai sobre os diálogos arrojados e o clima profundamente sexual e misterioso, mérito para a dupla protagonista, Charlotte Rampling e Ludivine Sagnier. Nuno Pereira
#01) Basic Instinct (Paul Verhoeven, 1992)
O filme que encerra a fenomenal epopeia de Paul Verhoeven com capitais americanos - antes de se afundar com "Showgirls" e o "Hollow Man". Os seus temas favoritos (a culpa, o pecado, a consciência, a perversão) ganham uma abordagem de luxo numa intrincada trama policial que contava com uma Sharon Stone num estado de graça e a bater em sensualidade e inteligência qualquer femme fatale da história do cinema. Além dela, a sua curvilínea amante Roxy (Leilani Sarelli) acrescentava um charme lesbian chic à história, que incluía requintadas cenas de sexo e a fabulosa sequência do interrogatório, onde um espectáculo de montagem e movimentos de câmara culminava com uma das cenas mais famosas do cinema recente - a do cruzar de pernas. Nunca mais se veria Sharon Stone assim - ainda que a sua fulgurante participação em "Broken Flowers", de Jim Jarmusch, servisse parcialmente de consolo. Roni Nunes
Menções Honrosas
Ai no Korîda (Nagisa Ôshima, 1976)
Contes Immoraux (Walerian Borowczyk, 1974)
La Vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)
Nymphomaniac: Director’s Cut (Lars Von Trier, 2014)
Uomo che Guarda, Le (Tinto Brass, 1994)
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