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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

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Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

Até amanhã, camaradas

Hugo Gomes, 29.10.23

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A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue dum peito aberto sai

“A Morte Saiu à Rua”, música de Zeca Afonso (dedicado a José Dias Coelho)

 

Com base na obra autobiográfica de Margarida Tengarrinha (1928 - 2023) - "Memórias de uma Falsificadora" - "Clandestina" parte da mórbida ideia de uma repetição histórica, em prática exagerada, mas em tese pensada como um "desejo ao vertigo", perante esse eventual retorno (vindo dos mais pessimistas dos pessimistas), quase como um exorcizar de espíritos oriundos de outras eras.

O filme é, então, a conjugação de duas realidades; a primeira, o texto de Tengarrinha, fantasmagoricamente citado e refletido como uma cápsula de um tempo não muito distante - a fase clandestina da autora enquanto falsificadora de documentos e na redação do jornal Avante, entre o período de 1955 a 1961, data fatídica do assassinato do seu companheiro, José Dias Coelho, pelas mãos da PIDE - e as imagens, reconstituídas numa contemporaneidade identificável. É pintar o moderno no passado, é construir uma ponte sobre as duas memórias, uma real, a outra abstratamente fabricada (há uma influência de “A Metamorfose dos Pássaros” nessa mesa de mistura imagética), de forma a gerar uma só realidade: a realidade da resistência. Portanto, a primeira longa-metragem de Maria Mire (“Parto sem Dor”) é essa continuidade do ativismo, tentando, com isso, e fracassadamente, equiparar-se ao relato de Tengarrinha. O ativismo de hoje, e felizmente, no nosso país, soa-nos como voluntariado, sem as consequências obtidas na luta em estados novos (ou antes, velhos).

"Clandestina" resulta desse exercício de escuta às histórias de coragem, bravura nas sombras, esse exército obscuro que não arredou pé perante a opressão, enquanto o visual, esse manufaturado, por mais interessante que possa ocasionalmente atingir, enfraquece com uma tendência atualizada de unir todos os "punhos erguidos" numa só luta. É uma visão politizada, essa, não correspondida às lutas travadas pela autora daqueles enredos. É um filme dotado de boas intenções, boas condições e bom material, mas demasiado ingénuo na sua posse; enquanto isso, há aquela elipse final ao som do grande Zeca Afonso, numa melodia que Tengarrinha nunca esquecera. 

"A Morte Saiu à Rua", e a clandestina exilou-se fora daquele jazigo em forma de país, levou o seu combate para outras extremidades, a partir daí a história tornou-se outra. 

 

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

 

E a seguir, Leonor?

Hugo Gomes, 12.08.23

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A miúda dos sapos”, cognome que Leonor Teles, assumidamente, deseja evitar após a sua “brincadeira” em forma de curta-metragem [“Balada dos Batráquios”] ter sido agraciado pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2016. A partir daí, surge-nos uma busca por algo maior: que cineasta temos em Leonor Teles? Uma demanda que a levou a uma longa à margem do Rio Tejo no rasto de uma personagem que sobressaísse do seu próprio filme - Terra Franca (2018) - passando para uma curta ambientada no Porto, com o fenómeno da gentrificação a remeter ao coração-vadio desse falso coming-to-age (“Cães que Ladram aos Pássaros”) em 2019. Talvez é nessas escapadinhas de “rapazes” que troçam de um iminente e incerto futuro que esteja encontrada a vertente do seu cinema, a preocupação de uma jovem urbana que enfrenta sozinha as adversidades do Mundo em movimento, um reflexo de todos os outros jovens, partilhando experiências, fraquezas e inquietações, e é daí que nasce um “Baan” (do tailandês “Casa”), a ficção em metragem de longa como desvirginação desse território. Será que desvendamos a Teles cineasta?

Contado em dois tempos e em dois locais, a jovem L (Carolina Miragaia), um heterónimo não assumido, dividida entre a Lisboa das orlas do Almirante Reis e o Bangkok de braços abertos (e apropriados) às estéticas de Wong Kar-Wai, fascínios e fixações, realidades e simulações, uma protagonista como tantos outros adultos “verdinhos”, de futuro pixelado, e ansiosos por uma resgatada luz ao fundo do túnel (conhecemos ‘gente’ assim, e pior, nada fazemos para os retirar dessa existencial situação, porém, até nessa passividade confirma a nossa impotência enquanto sociedade coletiva). Para todos os efeitos, este é um filme de descoberta e auto-descobertas, é Leonor Teles, esbanjada de elogios carreira acima e carreira abaixo, encarregada de tarefas hercúleas que vai desde a fotografia do díptico de Canijo ou do outro conto de inquietudes joviais (“Verão Danado”) em jeito festivaleiro, e agora motivada a emancipar-se, com isto, usufruindo dessa história de superação ao status vivente.

Não se deixem iludir pelo tom aqui descrito e escrito, Leonor Teles é um dos nomes maiores do nosso cinema, mesmo em tenra idade, por detrás das câmaras ou detrás da sombra de outros realizadores, é o rosto de um novo movimento, de um novo cinema português. Portanto, falar de Leonor Teles é falar do futuro, mesmo que em “Baan” encara-se uma experiência de impasse. Onde o filme quer-nos levar? Ou, o que poderemos extrair do filme? Nesse sentido, há que realçar a sensibilidade temporal e espacial de Teles em construir por via de uma diluição local um não-lugar. Entre Bangkok e Almirante Reis existe uma New Lisbon ou será um Bangkok europeu? É através do tal não-lugar que se reencontra a não-presença, a heroína silenciosa que está lá e não está, um brilhantismo espectral onde cada tempo é uma imprecisão.

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Flashbacks? Tal não é delineado, nem descrito visualmente como um conto em estado de progressão, “Baan” é sobre uma jovem, não de frente ao seu tempo, mas do seu tempo, não está presentemente no local nem na época, o seu espírito permanece ausente, talvez “preso” aos ecrãs de dispositivos tecnológicos em desejo de uma reabilitação, quem sabe? É um filme de desespero, de um desespero contínuo, sufocado e rebaixado. Leonor Teles, em conformidade com o já mencionado “Verão Danado” de Pedro Cabeleira, com “unhas” suas no visual, comunica com a sua geração, sem condescendências nem padronizações, e sim com empatia às suas “dores”.

Sentimo-nos em casa com as angústias da protagonista, contudo, é também uma obra de despertar a uma cineasta, a voz está embutida neste não-lugar e neste não-tempo, mas infelizmente a realizadora ocasionalmente abandona o corpo de Miragaia e avança às prestações a um ativismo colectânea, tentando “enfiar” tudo o que consegue no que requer a preocupações da Teles político-social sem o mínimo avanço nas bandeiras que escolhe. Perde-se a coerência do seu intimismo, adquire (sublinha-se intermitentemente) uma ânsia de agir (leia-se “apontar”) às patologias da sua contemporaneidade, como se assumisse um objeto plenamente politizado, enfim, todo o ato é político e o retrato desta jovem naufraga é mais que suficiente para o embarcar.

Desvia-se do coração e desvia-se da fonte, mas Teles é futuro e o seu cinema encontrará a forma sintática devida, nisso, sim, acreditamos. O restante é uma vidência do que Leonor Teles poderá se tornar, e ainda bem … 

Sangue Azul ...

Hugo Gomes, 20.11.22

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Reininho, o Rei, o Rui Rei ou Rei Rui, figura errante em territórios mesclados que o próprio apelida de sonhos, vangloriando a sua capacidade de os idealizar e controlar. É fruto da sua ambição, da sua excentricidade, da sua destrutiva aura em encontrar razão para o irreal da sua existência. Rui Reininho (deixemos os “trocadilhos” de lado), é do conhecimento de todos, a imagem, a voz, a musicalidade com que as palavras “expulsas” da sua boca são proferidas, o esoterismo motivado pela sua presença, o nosso GNR (o nosso artista-a-solo da Companhia das Indias)

Cantautor, poeta e artista, de braços estendidos para nos receber nesta estância cinematográfica, a sua vendida não-biografia, uma confissão decorrida no seu estado onírico. “A Viagem do Rei”, com o nosso Rui a servir de modelo perante a assinatura de João Pedro Moreira e Roger Mor, esboça-se como um protótipo de videoclipe, chanfrado, xamânico, chamado a depor. É uma jornada como o título indica, da realeza pelo real, um conjunto de formas que fazem “vai-e-vêm”, pelo passado, pelas memórias, pelas mágoas, atravessando o desejo, a criação e o abraço à morte, a próxima paragem entre as mil e uma paragens. 

"Descobriste o que podes ver dentro de ti! Sabes o que é que isso significa? Foste promovido. Já não és mais um vagabundo, és um artista”, a frase de Hans Richter em “Dreams that's Money Can Buy” (1947) pode ser enxertado, convidado inesperado, aqui. É o sonho e o que fazer com eles, essa essência rara que torna Rui Reininho no autor, no dito artista. Mas as comparações terminam aqui, o experimentalismo vanguardista de Richter não encontra páreo (nem influência) com as camadas entre camadas de dimensões e extorsões à realidade desta “A Viagem’”. Das ameaças ao Sol, às valsa entre detectives, da saliva que nos afoga e a poeira quente do sangue oculto, João Pedro Moreira e Roger Mor construíram um vídeo-musical prolongado, de ideias atiradas e conjugadas a imagens avulsas. 

Não é dos gestos mais originais, nem mesmo em panorama nacional - The Legendary Tigerman ousou converter-se a nada em 2017 (“Fade into Nothing”, Pedro Maia) - mas a performance de Reininho desculpa o vasto leque de sonhos limitadamente representados. A sua benção nos guia, e o ouvimos com mais gosto, ambicionando por mais e mais, sem fim de cumprir. Um exercício de estilo, de música pop e psicadélica, de vénia ao artista com prestação do mesmo. 

Rui Reininho é cá um personagem! Tem todo o direito de o ser e de o fazer. A viagem prossegue …

A sombra do marmeleiro

Hugo Gomes, 27.10.22

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As grandes montanhas são vistas à distância, as pequenas é preciso aproximarAntonio López

Para quem estiver a ler este texto, perderá e muito a pertinência transmitida por Irene M. Borrego neste seu concebido filme, até porque, para tal experiência é importante desconhecer qualquer indício de existência de Isabel Santaló. Primeiro, como mote ao tema latente - o esquecimento que paira nesta artista - e segundo, a inquietude e a indefinição da existência da mesma. 

A realizadora confronta diversas vezes Santaló, da sua memória e da sua auto-percepção enquanto artista, fala-se em subvalorização ou até negligência por parte do núcleo artístico madrileno (acrescenta-se sexismo), de outra maneira entendemos a uma síndrome “Norman Desmond” no preciso momento em que a anciã debate com a realizadora (do qual somos informados tratar-se da sua sobrinha) sobre a sua própria relevância. Aí o filme joga no campo da ilusão e da incerteza, o espectador é embarcado nessa dúvida que metamorfoseia em algo à parte do mero biopic ou obra-tributo. Longe do resgate que poderia suscitar neste gesto, este “La Visita y un Jardín secreto” é uma confrontação com "fantasmas interiores”. 

Para Borrego, as comparações com a sua tia, ouvidas vezes sem conta nos seus “verdes anos”, a perseguem, assombram-na como sinal de imprecação lançada pelo oculto conservadorismo às mulheres que desejam a emancipação. A realizadora guarda para si essa ambição e igualmente essa resistência em deserdar qualquer maldição ou espectros agarrados. O resultado, possivelmente, é esta “desavença” com a pessoa que a mais lhe assemelha, a sua tia “maldita”, a “artista da família”, a única, Isabel Santaló. Obviamente que o “inimigo” é fabricado, Isabel não é a antagonista na história de Irene, mas antes a sua dura inspiração. O destino hoje deparado, em que a idade é uma vilã tendo como aliada a solidão, invoca o maior temor de Irene

Dito desta forma, “A Visita e um Jardim Secreto” é uma farsa de filme, encosta-se como um “filme de artista”, mas é mais que isso, um filme sobre buscas internas em divãs proporcionalmente cinematográficos. Irene M, Borrego inconscientemente concretizou um filme sobre ela própria (se bem que os artistas falam deles próprios através do seu ofício). Isabel, o seu esquecimento (curiosamente, contamos com um voz-off de António López, o pintor de “El sol del membrillo” ["O Sol do Marmeleiro"] de Victor Erice, o único artista que declaradamente se lembra dela), a sua força enquanto mulher e artista, os seus quartos “secretos”, revelam-se como parte dessa tela. 

“Serás como a tua tia Isabel”

O fiel amigo Cinema

Hugo Gomes, 17.10.22

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Descobri, ou melhor, fui “relembrado” neste “Olho Animal”, de Maxime Martinot, através da sua formidável colectânea de 250 excertos de cães no Cinema, de que o primeiro animal puramente cinematográfico foi … esse mesmo … o canino. E este “post-it” surge-nos na forma do primeiro “documentado” filme (propriamente dito), a saída dos operários da fábrica de Lyon dos irmãos Lumière [“La Sortie de l'usine Lumière à Lyon”, 1895]. É que por entre aquela vislumbrada massa humana que dá por terminado o seu turno laboral, e antes da carroça e o seu solípede surgirem em cena, um cão, esquivando das passadas de homens e mulheres prontos a deleitar do seu merecido descanso doméstico, apropria-se do plano. 

O animal-fílmico, aqui, no gesto de Martinot, é o intitulado “cão-cineasta”. Será ideia inspirada nas provocações de João César Monteiro que tentaria reduzir o seu estatuto enquanto cineasta numa comparação com um canídeo? A verdade é que “Olho Animal” parte, erraticamente, como um “vira-lata” por entre as diferentes teses e temáticas. Seguimos um percurso algo evolutivo, mirando lentes ópticas de chocos e peixes-luas como primeiras estâncias, até percebermos que é Lisboa o nosso cenário e casa, e aí, os cães apropriam-se do filme, da fílmica e da filmagem. Eles coletam memórias, cinéfilas, apoiados nas suas quatro patas, exibindo os seus famosos dotes de fiéis amigos, e, como muito bem mencionado, “devolve-nos o olhar sem expectativas”. 

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João César Monteiro e o "cineasta-cão"

Digamos que há todo um ensaio eclético, o da colheita [como havia referido], a do intimismo abstracto [a diluição das memórias afetivas a dois cães como ode do companheirismo canino] e por a fim … perdoem-me “amantes de caninos” por achar o foco de maior interesse … um manual de construção de um cinema resiliente e expressivo em Portugal. Ou seja, o dilema que serve e núcleo da obra é imposta por Hugues Perrot e Raquel Scheffer, interpretando realizador e produtora respetivamente, discutindo a criação de um filme de raiz, “pedalando” pelas suas mais diferentes etapas. Nesta suposta narrativa cuja ideia vai culminar no reencontro do hipotético “cão-cineasta”, serve-nos de retrato de como e porquê de fazer cinema em Portugal, sem com isso respeitar (e desrespeitar) os moldes comerciais, exibindo na tela o, somente, nosso mais íntimo desejo. Há uma predominância do “EU” neste tipo de cinema, e é bem verdade que “Olho Animal” está consciente desse elemento na primeira pessoa, possivelmente satirizando na entrega da mais pura declaração: “o Eu torna tudo melhor”. Por entre esta mixórdia de temáticas, é normal, nós, espectadores, sentirmos desnorteados, mas é nessa desorientação do qual somos envolvidos com o filme. 

Se “Olho Animal” é um filme-diário antropológico, ou um filme autobiográfico, ou até mesmo um filme-diário animalístico, tal absolutismo não estamos encarregue de decidir, a natureza deste “cinema-animal” poderá ser entendida como um objeto de cura - “Filmar o meu cão para afastar a minha ansiedade”. Ou, quem sabe, atribuir a um filme o que associamos como propósitos de um animal de estimação.

Talvez tenhamos mudado as placas e distorcido as falsas-noções à la Magritte: “Olho Animal” é um cão, enquanto o cão é um filme. 

Memórias & Cinema-animal

Hugo Gomes, 15.10.22

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Podemos acreditar, por momentos, que o cinema não pertence exclusivamente à Humanidade? Uma “lógica” impossível numa arte de registar e partilhar imagens (acima de histórias) visto como um gesto puramente humano, direcionado para humanos, portanto tal questão remete-nos para fora do circuito da racionalidade e aproxima-nos da fronteira do abstrato que ansiamos por anexar. 

Contudo, vejo em “Ultimate Bliss” uma contradição (e como gosto de contradições!), um relato sobre relações humanas (aqui Marisa, a voz no qual associamos, a remetente de uma carta de Miguel de Jesus [realizador], a odisseia aí descrita em tom de melancolia), porém, como se pode evidenciar nesta jornada, nem uma alma humana encontra-se presente visualmente. O Cinema que serve de cápsula para a sua história (meramente relatada) não lhe pertence, o selvagem apropriou-se dela, de plantas a fungos e por fim, animais, estes, as verdadeiras “estrelas”. 

O exotismo é uma oferenda de Jesus ao público, longe do turismo estético, não o sentimos como tal, porque o fascínio não está somente na diversidade de criaturas captadas neste seu universo (vemos wombats, diabos da Tasmânia, wallabies, cangurus e até mesmo koalas, fauna australiana, portanto) e sim na representatividade destas figuras que reconhecemos enquanto seres exóticos (e antípodas). Até porque esse exotismo possivelmente emanado é dissipado pelos grãos visuais - estes signos animalescos são convertidos a memórias ou integram a mesma matéria - cria-se familiaridade com este mesmo exotismo graças ao Super 8 que acompanha a jornada existencialista dos nossos “protagonistas” invisíveis. 

Portanto, “Ultimate Bliss” é uma história de homens e mulheres sem o seu selo de antropocentrismo, aqui somos devolvidos à Natureza que nos faculta a olhar para o nosso redor, mesmo tendo a consciência dos nossos fados, sem a mínima intenção de centrar-nos em relação ao Mundo. Um gesto sem egocentrismos … e mais uma contradição, tendo em conta (que segundo o próprio) nasceu de um reflexo intimista. 

20 Anos de Doclisboa: a Galeria Digital

Hugo Gomes, 08.10.22

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Para comemorar os seus 20 anos, o Doclisboa preparou-nos uma Galeria Digital de videos de 20 segundos, com contribuições de autores e artistas como Valérie Massadian, Avi Mograbi, Edgar Pêra, Teresa Villaverde, Regina Guimarães, Renata Sancho, João Pedro Rodrigues, James Benning, Pedro Florêncio, Karen Akerman, João Mário Grilo, Jorge Pelicano, entre outros.

Para visitar aqui.

"Objetos de Luz": da luz nascemos, da luz morremos

Hugo Gomes, 28.08.22

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Da última vez que Acácio de Almeida assumiu a realização, foi há 47 anos num acontecimento cinematográfico denominado de “As Armas e o Povo”, a colheita de emoções e a transição de um país novo vivendo as orgásticas comemorações do 25 de Abril e do primeiro 1º de Maio. Mesmo “não creditado" ele esteve lá, porém, apesar do longo hiato, de Almeida não esteve longe do cinema, pelo contrário, bem perto, presente e criativo. Não é por menos que se tenha vangloriado o estatuto de lendário diretor de fotografia da cinematografia portuguesa, o seu percurso é também uma recolha de experiências, impressões e dedadas digitais. 

Em Acácio de Almeida existe um cinema seu, tão seu como dos que assinaram os créditos de realização. Portanto, é com 47 anos em “segundo plano” (as aspas importa para desfazer o literal sentido, como se no cinema existisse hierárquicas artísticas, apesar de encontrarmos nela uma pirâmide composta por capitães e sargentos, assim como praças, já dizia Joaquim Pinto em “E Agora? Lembra-me”), entre Macedo a Oliveira, Cunha Telles a Azevedo Gomes, Villaverde a Costa, ou Silva Melo a César Monteiro, que regressa com uma direção da sua (co)autoria. Só que não é um filme. Quer dizer, é um filme, uma metragem, uma expressão traduzida em imagens anexadas a palavras, é um trabalho como manda a bitola cinematográfica, não vamos destroçar o Cinema como algo padronizado. O que realmente quero dizer é que Acácio de Almeida elabora ao longo de 60 minutos uma reunião, quer de amigos, colaboradores, rostos e mãos que lhe teceram o cinema tão dele como nosso, e através desse círculo de “conhecidos”, começou a falar. Ou talvez seja a deambular, pelos seus pensamentos, as reflexões de cinema que “pintou” e mais do que isso, na combustão desse seu universo - a Luz. 

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Trabalhar a luz, é como trabalhar os signos da vida. É ser Deus por um dia, ou melhor, por uma rodagem. É questionar a nossa existência. É ceder ao reduzido da nossa insignificância. Para Acácio de Almeida, não somos mais que “Objetos de Luz” (o título revela mais do que a designação), filhos da escuridão apenas contornados pela sua antítese: “O que somos nós em relação à luz? Qual o elo que nos liga a ela?” Perguntas lançadas ao abismo, posteriormente respondidas com a confirmação do óbvio - “somos feitos de luz”. Mas a jornada até essa resposta indefinida é um questionamento da Ordem do Cinema, a dita e simbiótica corrente de todas as partes, não é mais que uma ilusão. A Luz é o centro de tudo, como do fim dos mesmos, e Acácio de Almeida pensa em luz. 

O filme (aí está a minha contradição) é inicialmente o arranque desse filosofar, presentes em encenações (Manuel Mozos, o nosso “zeitgeist” era cameo mais que esperado) ou de constatações (Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra a constatar que o tempo avança, a juventude morre e só a luz que projeta essas “memórias” imagéticas de um passado “lucidamente” imortalizado). Acácio de Almeida brinca por momentos com a sua filmoteca, mas cede ao bucolismo como via de criar um filme seu concretamente enquanto interroga o seu espaço (“O cinema é uma prisão, a prisão da memória. Aprisiona para libertar (...) fusão de tempo e de espaço. Actos de transfiguração”). 

Objetos de Luz” (não esquecer o outro “lado da laranja” - Marie Carré, a atriz, que certa vez banhou-se na luminosidade de “Agosto”, quer de Acácio’, quer de Jorge Silva Melo - também assumida como realizadora aqui) soa-nos como um espólio de ideias, e poderia ser um legado deixado, um livro que encontra sentido em filme, pronto a ser projetado através, disso mesmo, da luz. Talvez seja por isso que faça sentido nesse formato, ao contrário de uma página de papel, o filme revela-se na casa de Acácio de Almeida. A sua luz, a sua escuridão, o seu contraste e a sua criação.

66 Cinemas depois ... Uma conversa sobre o futuro das salas com Philipp Hartmann

Hugo Gomes, 06.12.20

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"66 Cinemas" (Philipp Hartmann, 2016)

Em Portugal existe um provérbio antigo e exaustivamente utilizado no nosso quotidiano – “Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé” – e foi através deste tipo de pensamento que o documentarista alemão, Philipp Hartmann, perante uma falta de interesse das distribuidoras locais no seu filme, decide ele próprio transportar o seu trabalho a 66 cinemas espalhados na Alemanha e alguns da Suíça.

A ideia inicial era fazer chegar a obra ao maior número de pessoas, mas o sangue de cineasta corre nas veias de Hartmann, e determinado a registar estes seus encontros com os públicos, proprietários, técnicos ou simplesmente de passagem nos cinemas que o acolhera, transformou-se rapidamente numa reflexão perante o futuro do cinema enquanto espaço de partilha de experiências e de ideias.

Aproveitando a sua própria passagem no Doclisboa para apresentar um novo trabalho seu “66 Cinemas”, falei com o realizador sobre a sua digressão cinematográfica e sob a influência pandémica o qual vivemos. Uma conversa acerca da sobrevivência, ou será melhor, resistência a este nosso património – os Cinemas.

66 Cinemas” está disponível no videoclube da Zero em Comportamento.

Sabendo que o seu filme foi produzido em 2016, chegando só em 2020 ao alcance do público português, não podemos deixar de evitar de falar sobre este cenário atual. Numa altura em que se cada vez mais se fala da morte do cinema, não como a arte em si, e sim espacial – a sala de cinema – de que forma, o seu filme tornou-se premonitório no seu gesto?

Gostei do momento quando este filme é lançado, no meio da pandemia onde ninguém sabe ao certo se teremos cinemas ou não. Aproveito a tua pergunta, que achei curiosa, o de pensar no cinema como um espaço, que também, como se vê, é uma incógnita. Será que as salas de cinemas serão preservadas, sendo que no centro crise exista uma limitação que condiciona a própria experiência, assim como a rentabilidade do espaço? Mas como gesto, o de mostrar um filme sobre cinemas neste preciso momento em que eles terão, mais que tudo, dificuldades, é um gesto de resistência.

Esta estreia coincidente é um gesto de resistência!

Fica aqui só um aparte, há algumas semanas recebemos uma notícia de que, estimava-se, 50% dos cinemas portugueses em Portugal poderão encerrar até ao final do ano. Voltando ao seu filme, o “66 Cinemas” já nos apresentava um sector em resistência. Relembro que muitos deles continham restaurantes ou cafés como alicerce financeiro, e que os seus trabalhadores afirmavam sujeitar aquela posição como amor. Hipoteticamente, se não existisse pandemia, acreditaria que muitas salas não sobreviveriam num futuro bem próximo?

Bem, em relação aos cinemas, eu posso abordar a situação na Alemanha, o qual imagino que seja parecida com o cenário português, não em relação afetiva ou “quantidade” de amor ao cinema, mas na sua relação económica.

Na Alemanha, os cinemas não possuem muitas, mas tem certa ajuda financeira por parte do Governo(s). Não refiro a grande parte das salas, mas a esses, chamaremos assim, “cinemas de resistência” do qual recebem alguns tipos de ajuda, que só compõe uma parte do orçamento deles. Porém, só uma parte que os ajuda a sobreviver nesse mercado que não é de todo um mercado muito lucrativo. Mesmo assim, para muitos não é mais do que um hobby. Existe um amor ao Cinema que se revela numa força maior que os move a promover a Arte. Mas por um lado, existe o fator económico que obriga muitos desses cinemas a encontrar maneiras para conseguir sustentar-se. Por isso, com ou sem pandemia, a situação já era difícil.

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Philipp Hartmann

Por outro lado, desvalorizando a própria pandemia, relembro que nos anos 50 já se falava da morte do cinema em sala com o surgimento e expansão da televisão, e nas décadas seguintes atribuiu-se a culpa ao VHS, depois chegaram os DVDs, a Internet e agora Netflix, ou seja, existe sempre uma força antagónica perante as salas de cinema e que é vista como seu carrasco. No final, o cinema sempre sobrevive. A minha esperança e otimismo, o qual tentei depositar no filme, é que enquanto existirem pessoas determinadas a lutar pelo cinema ou demonstrar o seu grande amor por ele, este sobreviverá.

Pode ser um ato de resistência, e seguramente o é, mas espero que seja o caminho do sucesso na luta. Mas agora, com a pandemia, a situação será mais complicada, porque depende do nosso regresso à “normalidade” e de quanto ajuda os Governos estarão dispostos a dar para os proteger, ou os salvaguardar, quem sabe, de uma próxima pandemia.

E quanto à resistência do seu ato de amor?

Nesse sentido, me vejo do lado do cinema, porque o meu modo de fazer cinema, é também dirigido por amor, por convicção, do que pelo lado económico. Com os meus filmes, eu ganho praticamente nada, mas que tenho conseguido realizar, com sorte, graças aos apoios de finalização por parte do Governo. As minhas últimas três longas-metragens só foram possíveis com essas doses de determinação e ajuda.

Não faço filmes por resistência, mas resisto ao mercado e às condições adversárias.

Um ponto curioso neste seu filme, é que ele nasceu a partir de outro filme – “Times Goes By Like a Roaring Lion” – o qual iniciou a tournée. Gostaria que me falasse qual foi a altura ou momento em que encontrou nesta sua viagem um motivo para a criação de um novo filme?

Não foi a ideia inicial, mas o motivo é um pouco nessa linha que acabou de falar, do qual sentia o lado dos operadores de cinema. Talvez porque lutamos pela mesma causa em diferentes sentidos. Eu faço filmes resistindo ao mercado desfavorável e eles também resistem. Então, lutamos juntos e é através dessa união de forças que se torna possível levar esses filmes ao seu público.

Para o meu filme anterior, “Time Goes by Like a Roaring Lion”, não encontrei nem uma distribuidora interessada … imagino que seja um filme difícil de se vender segunda a lógica do mercado …. visto tratar-se de um ensaio muito pessoal e filosófico sobre o tempo … por isso decidi distribui-lo pelos meus próprios meios. Contactei os 66 cinemas … aliás contactei muito mais mas só este número acabou por me convidar a mostrar o meu filme. A intenção era exibir o filme, comigo presente, o qual faria uma apresentação ou participava nos Q&A, e no dia seguinte partia para o seguinte cinema.

Tive 3 a 4 meses nesta tournée, percorrendo toda a Alemanha e uma parte da Suíça. Porém, foi antes da viagem – percebendo a grande oportunidade que teria para conhecer todos estes cinemas – que senti-me na obrigação de levar uma câmara comigo, para poder documentar. Aí pensei mesmo em fazer uma “coisinha” rápida com entrevistas, só que no final recolhi entre 200 a 300 horas de filmagens! É óbvio que não seria uma “coisinha” rápida como previa. A juntar isso, tive a sorte de vencer um edital em Hamburgo, uma verba pública para me ajudar a montar e a colocar alguma dramaturgia no projeto, e pude tomar o tempo necessário e preciso para trabalhar neste filme. Passei quase um ano só a montá-lo.

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“Time Goes By Like a Roaring Lion” (Philipp Hartmann & Jan Eichberg, 2013)

Dessa sua experiência pelos cinemas, o que é que extraiu na relação entre o seu filme, “Time Goes By Like a Roaring Lion” e o público?

A experiência mais importante e prazerosa, para mim, foi o contacto com o público.

Neste caso específico, o “’Roaring Lion”, sendo um filme bastante pessoal e em efeitos de ensaio não é propriamente um filme que tenha uma mensagem e percetível, há que pensar sobre ele. Para mim era interessante perceber e ouvir o que o público pensava sobre o meu trabalho. Em cada apresentação, aprendia algo novo com este filme. E só de o repetir por 66 vezes essa experiência tornou-se ainda mais fantástica.

O contacto é um dos elementos que mais se destaca no cinema, o lugar social onde vemos um filme juntamente com outras pessoas, dando a possibilidade de poder debater ou trocar ideias com os demais. Esse lugar de comunicação é o que mais me diferencia de ver um filme numa sala do que … sei lá … ver um filme em casa, por exemplo. Muitas vezes nos nossos sofás, computadores, televisões e até mesmo projetores não temos essa possibilidade de partilhar a experiência com outras pessoas.

Pegando nessa sua última frase, “partilhar a experiência”, acredita que é dessa forma que o Cinema ganha ao streaming?

Com certeza. Fora essa experiência social, o qual podemos presumir replicar em nossas casas com um grupo de amigos, é na partilha com desconhecidos que nascem encontros improváveis e enriquecedores. Para além de não falar nas condições técnicas, não se compara as muitas salas de cinemas com o home cinema. Outro fator que pode, e muito, distanciar da experiência caseira, é que muitos destes cinemas possuem uma curadoria.

Durante a rodagem de “66 Cinemas” deparei-me com diversos espectadores que me confidenciaram ir para aqueles mesmos cinemas, porque segundo eles “aqui só ‘passa’ filme bom”. Ou seja, em muitos destes espaços existe uma confiança nos programadores, um vínculo com os espectadores e por sua vez, são muitas destas salas que formam público.

Enquanto no streaming somos refém de um algoritmo …

Sim, mas por vezes não é só o algoritmo, o MUBI, por exemplo, que é uma plataforma que eu uso, existe de facto uma curadoria. Mas para muitas pessoas, normalmente quem não seja cinéfilo, há uma relação de confiança com o programador do cinema na esquina do seu bairro, porque isso lhe traz uma possibilidade de discutir o que viu com ele.

Tendo em conta que está em Lisboa para apresentar um filme num festival de cinema – aliás devo realçar, físico – relembro que no início do ano vários festivais (como por exemplo, o Visions du Réel), de forma a sobreviver, migraram por completo para o online através de plataformas próprias. O que pensa sobre isto, e se o streaming é uma solução para estes tempos incertos?

É uma pergunta interessante, até porque o filme que é exibido no Doclisboa é outro – “Virar Mar” – que é um filme criado para o efeito de ser visualizado no grande ecrã. Há um cuidado especial nesta obra, nem que seja pelos atributos técnicos, o qual destaco a excelente fotografia que requerem esses elementos. Já “66 Cinema” é uma produção que se vê bem em outros ecrãs, não é um filme que apela à grande tela e se encontra em outros festivais, grande parte deles, virtualmente.

Quanto à questão dos festivais online, enquanto durar esta pandemia, penso que é melhor um filme ser visto nessas condições do que não ser visto. Não tenho uma opinião decidida sobre essa migração para o online, só acho que de momento o streaming e essas plataformas são a alternativa arranjada para o Cinema. Mas quando a pandemia terminar, há que terminar essa tendência de “ir tudo” para online. As pessoas tem que voltar aos cinemas, porque é aí que o único local onde o cinema deve ser visto.

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“66 Cinemas” (Phillip Hartmann, 2016)

No seu filme encontrei uma definição bastante paradoxal que é o “multiplex independente”. Quer me explicar o que é certamente?

Julgo que estás a falar concretamente do Cineplex? São uma franquia de cinemas que antigamente era salas de cinearte, mas que nos anos 90 de forma a conseguir adaptar e sobreviver aos novos tempos, nomeadamente com o aparecimento dos multiplexes, os donos aperceberam que para isso não poderia restringir com o filme do Godard ou de outro autor e que teriam que albergar esses blockbusters americanos e vender pipocas e todas essas ‘tretas’ de consumismo. Não sei se concordo muito com esta tática, mas foi através delas que estes cinemas perduram.

Ainda hoje esses Cineplexes são geridos por uma família, ao invés de uma empresa … sei lá … sediada em Inglaterra, ou algo assim. Mas no caso do Cineplex que se encontra no meu “66 Cinemas”, a gerente tinha um luxo especial que era, para além da programação estandardizada, poderia todas as semanas apresentar um filme específico e convidar um realizador para falar dele. Tive a sorte de ser um desses realizadores convidados e foi uma experiência particular. Na minha sala encontravam-se entre 15 a 20 pessoas, enquanto sabíamos que na sala ao lado havia 300 a ver o último “Star Wars”, mas não me importava, porque sabia perfeitamente que as 15 pessoas certas estavam a ver o meu filme.

Um fenómeno curioso que aconteceu em Portugal, possivelmente tenha acontecido em outros locais como na Alemanha, foi que na reabertura dos cinemas assistimos um sofrimento dos multiplexes em reaver o seu público, enquanto os poucos cinemas de bairro e independentes readaptaram-se melhor a esta “nova normalidade”.

Os que mais sofrem com a pandemia, pelo que acompanhei na Alemanha e aqui pelo que dizes é um cenário idêntico, sãos os multiplexes, porque não têm o novo James Bond ou o antecipado blockbuster, enquanto os cinemas de bairro, os de cinearte têm suficientes filmes para exibir, sofrendo menos com essa “falta de programação”. Já imaginei o seguinte: que no fim da pandemia morre o cinema comercial e só sobrevive os pequenos. Seria a vingança do cinearte!