Delírios na Terra do Nunca
«Tu estás livre e eu estou livre, e há uma noite para passar».
Francisco e Maria conheceram-se naquela mesma noite. Agora, dançam ao som de cantigas de outros tempos num terraço em Lisboa.
«Porque não vamos unidos. Porque não vamos ficar na aventura dos sentidos.».
Foi há poucas horas que discutiam sobre a posse de um isqueiro. Um isqueiro encontrado no meio da rua, sem dono, passando directamente das possessões de “meu”, “teu” e por “nosso”.
«Tu estás só e eu mais só estou. Tu que tens o meu olhar».
Francisco e Maria sob o ritmo daquela canção, não se tocando fisicamente, mas criando um elo através do olhar, uma cumplicidade que os levará ao fim da noite.
«Tens a minha mão aberta, à espera de se fechar nessa tua mão deserta».
A festa, a saída, aquele encontro entre muitos que termina a dois. Por fim, estas duas figuras são guiadas para os aposentos, sob as promessas do consumo daquela atração que “cresceu” numa pista de dança.
O dia fez-se, Maria acorda primeiro que Francisco, mas não o abandona, ao invés confronta-o a sair da sua cama, da sua casa, por fim, da sua vida. Francisco passou uma noite, uma “aventura dos sentidos” como cantarolava aquela música de António Variações naquele discreto arraial. A partir dali, a nossa personagem nunca mais viu Maria. Nunca a procurou, nem nunca precisou, o que aconteceu foi uma experiência, não um romance. Romance? Que importa tal coisa neste “Verão Danado”?
Pedro Cabeleira concentra nesta sua primeira longa-metragem, um filme instintivo que resulta numa jovialidade embelezada de teor hedonista. A festa que nunca termina, e as ressacas intermédias que transformam o espectador no vivente desta alegoria jubilante. O jovem realizador não pretendeu um retrato geracional, tal como declarou em entrevista [ler aqui], as suas pretensões são simples, possivelmente fúteis ao olhar, e nelas recolhe uma complexidade “danada”. Um estado de espírito que há muito não perseguíamos, a mais notável sensação do início de uma experiência, qualquer que seja a sua natureza. O erotismo trazido por esses caminhos extra-sensoriais, a “gula” de conhecer as personalidades “passageiras”, o de se focar nas “criaturas da noite”, essa fauna que se alimenta, de forma vampírica, das sequências festas.
O geracional é involuntário, “Verão Danado'' é a marca da sua equipa, do “sangue” e dos “verdes anos” depositados por esta. Sei, as aspas não foram coincidências, dois filmes tão queridos da nossa cinematografia, de Pedro Costa a Paulo Rocha, ambos que entraram em Lisboa como estranhos pedintes, maravilhando uma prisão de concreto e um quotidiano que se afasta das suas anteriores idealizações. Aqui, Cabeleira remete o conto do rural para a cidade, mas as consequências são todas menos saudosas, há uma prisão sim, mas o nosso protagonista (Pedro Marujo) não anseia evadi-la. Pelo contrário, quer imergir no psicadélico desta jornada em estado de passividade.
Mas para os que não acreditam na folia, “Verão Danado” não é um filme refém dessas fantasias draculeanas, do desejo interminável de permanecer jovem para todo o sempre. Entre ressacas que prestam serviço a elipses narrativas, Cabeleira forma um circulo de uma geração à deriva, recém-licenciados em busca do seu primeiro trabalho ou dos sonhos que teimam em não coexistir com as suas realidades. Mas ao invés da pedagogia de um “Morangos com Açúcar” e da ideia de formação encetada, “Verão Danado” abrange a experiência-simulacro. O espectador é um mero festeiro pronto a esquecer do Mundo que o abandonou, ou que simplesmente não o compreende. Pela noite adentro, sob a estética (existem traços do cuidado visual de um Gaspar Noé) que sobrepõe a câmara em plena demanda, como alguém que procura o foco de interesse num convívio fora do controlo.
A verdade é que o cinema tem ido cada vez mais ao encontro dos mais jovens e, com isso, rejuvenescido. E esse rejuvenescimento não é um factor que deva ser ignorado, nem sequer desprezado. Verão Danado exibe os dotes dessa tremenda juventude… até Nuno Melo, quando surge, cobiça esse tão inexistente elixir. Ó tempo, porque não voltas atrás?