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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O agridoce espírito do poeta mundano

Hugo Gomes, 28.06.17

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Não é passividade, é conter o olhar e seguir à deriva de um ciclo ritualista, o quotidiano rotineiro no qual o mundo de Paterson parece encaixar. É assim que chegamos à 13ª longa-metragem de Jim Jarmusch, na qual cita uma premissa que se poderia facilmente render aos “encantos” do cinema mainstream passageiro ou às ascensões de underdogs, essa fórmula tão premiada pelas multidões restringidas às suas próprias rotinas.

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Poderia, mas é aí que o realizador oriundo de Ohio surpreende com um já habitual prazer pelo tempo, aquela força física e não a metáfora recorrida ao “faz de conta”. É com esse tempo caído em desgraça nos ponteiros do relógio, parecendo voar na mente do nosso protagonista (um motorista de autocarros que partilha, para além do nome, a solicitude da cidade onde habita) que Jarmusch conserva as suas personagens.

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Elas respiram, pensam para lá das suas limitações, não impedindo, porém, que sejam reféns dos seus maneirismos ritualistas. De certa forma “Paterson” é um filme de rotinas, e é nelas que o cineasta deposita a sua alma zen ao espetador, enquanto o protagonista toma tréguas com o seu interior artístico, o desejo de ser um poeta, não como um estatuto social ou na esperança de riquezas que daí advenham, mas num enriquecimento emocional, que, como ser consciente, é incapaz de revelar.

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Não, não caímos no rótulo de looser, tão bem presente no chamado cinema independente norte-americano muitas vezes celebrizado em Sundance. Ao invés, este Adam Driver é a ventura contida nas palavras de Ozu - “a felicidade cria-se e não se espera“ - é o conformismo que se adequa a esta semana tão reconhecível e tão facilmente corruptível (uma ida ao cinema converte-se no mais deliciosos dos escapes). Tais como os vampiros que preservam o seu refúgio em “Only Lovers Left Alive”, Paterson encontra a harmonia de espaço, o atentar das conversas alheias (que aludem às características de bom ouvinte do cinema de Jarmusch, invocando uma das suas obras mais célebres – “Coffee and Cigarettes”), aos inesperados atrelados, não como conflitos a servirem de dispositivos narrativos de modelos clássicos, mas como o “brinde” que se esconde nesta comunhão entre o ser mundano e o seu orgulho, apenas quebrada pelo ócio.

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E, mais uma vez, este quotidiano envolvido em camadas, assim como as camadas envolvem Jarmusch e sucessivamente o nosso Paterson, o homem sentenciado ao cinema do outro. Paterson (filme) é um conjunto dos dois mundos tão presentes no autor. A música, explícita nas idas ao bar como uma busca de uma atmosfera trazida por esse doces acordes dos blues e jazz, “listen to them, the children of the night''. What music they make!” (diria Bela Lugosi sob o texto de Bram Stoker), e por fim, o mais evidente, a poesia que atravessa de forma conectada todo o filme, assim como toda a obra de Jarmusch.

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Roberto Benigni citava em italiano alguns autores norte-americanos (Walt Whitman, Bob Foster) em “Down by Law”, quase como uma afronta aos statements artísticos do russo Andrei Tarkovsky perante a obra do seu pai poeta (“a poesia não tem tradução”). Da mesma forma surge em Paterson uma personagem mistério com o seu caderno de trabalhos, referindo que a sua obra só tem significado na sua língua materna e, por isso, renegando completamente a tradução, essa maldita tendência pró-Babel (“Poetry in translations is like taking a shower with a raincoat on“).

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Mas é nessa poesia que recorta os dias de Paterson, assim como a sua mente, uma ode às vozes estampadas nas palavras de muitos, e com especial atenção a obra de William Castle William até porque Paterson (cidade) é um signo da sua própria poesia, mesmo que não queira cair em citações de trechos do seu trabalho. Porque, parecendo que não, o filme de Jim Jarmusch já transborda, por si, essas palavras soltas, unidas numa precisa e bela onomatopeia. Como o filme, achamos que não há melhor maneira de terminar aqui do que citar, por uma última vez, a personagem misteriosa: “Sometimes an empty page presents more possibilities“.

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Políticos não se confessam, dizem eles

Hugo Gomes, 25.06.17

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Desde cedo os italianos souberam extrair da crítica social, como política, o seu modelo cinematográfico. O neorrealismo, oficialmente nascido em 1943, é tido como uma dessas importantes visões de ousadia mordaz, enquanto que se servia de afronta para a ideia, então estabelecida, de cinema, contrariando as tendências estilísticas, filmando de forma estilizada, um realismo não estilizado (Erwin Panofsky).

Com o passar dos anos, as críticas italianas obtiveram as suas diferentes facetas, desde a comédia à lá Itália que olhava para o humor como um portento escudo no seu ataque, e o "fellinismo", esse surrealismo barroco disfarçado que se abatia anos seguintes como um novo signo de vocabulário cinéfilo. Por fim, aparece-nos a poesia de Pasolini a servir de contraste e a fervorosa veia política de Nanni Moretti a prevalecer numa despida sinceridade ideológica. Ou seja, em sangue italiano, a política como tema crítico para uma visão analista corre com tamanha agressividade nestas veias.

Atualmente, o cinema não encontra nenhum movimento artístico predefinido, e a globalização tem tido papel fundamental na diversidade de vozes, cuja única similaridade é esse tom crítico. “Le Confessioni” é o enésimo avante de discurso político, principalmente vindo da dupla Andò / Servillo, que após o sucesso de “Viva La Libertá” (“Viva a Liberdade”), onde apresentava o humor doppelganger para construir uma política de sinceridades (mas nunca objetiva na sua crítica), reúne-se para invocar um misto de referências, que vão desde uma reunião G8 e a clássica forma de thriller de Agatha Christie, passando pelas óbvias menções de “I Confess”, de Hitchcock (as personagens estão encarregues de elucidar-nos) e a estética que fora mundialmente reconhecida pela cinema de Sorrentino.

Toni Servillo é um monge de raízes misteriosas, convidado a participar em tal reunião política, a pedido do líder do FMI, Daniel Roché (Daniel Auteuil). Os motivos deste misterioso convite são revelados após o suicídio deste último. Um ataque às políticas de austeridade e às empresas que ganharam com a crise, que tanto têm a dizer para os países do Sul da Europa, como Itália. Contudo, esse mesmo ataque é feito por impasses do grotesco burguês à lá Sorrentino, mas ao contrário do realizador de “La Grande Bellezza”, Roberto Andó funciona como um impostor, copista, e essa preocupação pela estética revela-se na sua maior fraqueza, até porque o filme nada tem para dizer, para além de um extremo senso de moralismo.

Entre punchlines aqui e ali, frases que nos levam à nossa consciência moral, "Le Confessioni" é demasiado preso às suas influências. Toni Servillo é imperativamente regido pelo seu ego e o resto, totalmente inofensivo, interligando as devoções religiosas, o maniqueísmo das boas ações, como uma solução pela frieza política. Tal como diz Connie Nielsen a meio do filme, "já todos andamos fartos de contos de fadas".

Chorar pelos mortos, só depois de cuidar dos vivos ...

Hugo Gomes, 24.06.17

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A terceira longa-metragem da ainda jovem realizadora e argumentista, Katell Quillévéré, é um pedaço de sensibilidade enrolado num naperon suis “catita”. Baseado no premiado bestseller francês (escrito por Maylis De Kerangal), “Réparer Les Vivants” remete-nos ao tema do transplante de órgãos para revisitar os bons costumes do cinema emocional, num tecido tão próprio para o público mainstream e para os menos absolvidos a essas “multidões”.

Sim, Quillévéré tem estofo na sua direcção, consegue-se envergar pelo tempo, esses compassos de espera, para extrair uma delicadeza fragilizada nas suas personagens, de forma a construir um quadro narrativo, uma espécie de falso filme-mosaico com uma única raiz – o coração de um jovem levado antes do tempo. O título traduzido, “Cuidar dos Vivos”, explicita essa vontade de juntar os “cacos” depois do acidente, a de cuidar destas personagens que respiram pós-morte, contagiadas pela tragédia.

Mas mesmo assim, é na morte que o filme encontra a sua beleza, é nos momentos que a antecede que a câmara de Quillévéré proporciona-nos uma divina ida pelo purgatório. O olhar debaixo, no arrebatar das ondas. Submerso num oceano de vida, onde a cor mais quente é o azul, as visões que se lançam como coros angelicais num repouso dos bravos, o nosso “morto”, um jovem surfista que faz as tréguas com a sua existência antes do seu desfecho. E por fim, a transposição de cenários que abrem essa porta para o desconhecido, a vida para além do leito da morte. São belíssimas e inspiradoras imagens, essas que Quillévéré nos confia, para depois seguir num percurso do sensível, por entre lutos e esperanças de uma nova oportunidade existencial.

E é sim, depois da morte que o filme parece ter perdido a sua vida inicial, essa vitalidade invejável, ficando assim as réstias de um demorado melodrama com obscuros e melosos toques. Não foi a obra que esperávamos, mas a caminhada até a morte compensou-nos.

No seu dia mais feliz, a derrota soa como triunfo para Olli Mäki 

Hugo Gomes, 23.06.17

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Em 1976, nas ruas de Filadélfia (bem poderia ser uma música de Bruce Springsteen) surgia um boxeur underground com as ambições de competir na grande liga. Intitulado de Italian Stallion, ele conseguiu essa oportunidade de estar entre os grandes e, não só, também combater com o na altura campeão de pesos-pesados, Apollo Creed. O leitor certamente já deu de caras com o filme que proponho, Rocky, a tão popular ascensão cinematográfica que arrebatou meio mundo e o tão cobiçado Óscar de Melhor Filme. Porquê falar de Rocky, visto que o cinema já abordava o pugilismo como um espectáculo cinematográfico? Sim, com devida razão, o filme não foi, nem será, o primeiro, nem o último exemplar do seu género. Contudo, a obra teve a capacidade de revitalizar esse amor tão antigo entre o boxe com a Sétima Arte, quiçá, o desporto mais simbiótico com a grande tela.

E é com tão popularizado jab que seguimos para um opositor, 41 anos depois e mesmo assim o combate que mais fala a sua linguagem. Eis O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Mäki (The Happiest Day in The Life of Olli Mäkique tão bem poderia passar por uma criação qualquer de Aki Kaurismaki, mas não é. No centro desse “embuste” estético (a fotografia preto-e-branco visualmente granulada coloca-nos nesse equívoco e, ao mesmo tempo, requisita a memória de algumas obras desse grande nome do cinema finlandês (Calamari Union, Juha ou até Take Care of Your Scarf, Tatjana, de forma a citar alguns), encontramos o jovem Juho Kuosmanen a dirigir esta história de underdogs rumo ao estrelato, ou pelo menos, a restringir-se a esse mesmo rumo.

Desde os primeiros minutos, o espetador apercebe-se do tipo de espectáculo para que veio, um filme do “ia sendo”, onde todas as personagens estão em plena colisão com a mais triste das belezas (relembrando as palavras de Fernando Lopes, e porque não encontrar aqui o fôlego de Belarmino) – a derrota. Ao contrário do sucedido há 41 anos, o romance é frio entre as duas plataformas, Kuosmanen não está interessado em feel-good movies, não no sentido mais óbvio da palavra, o nosso pugilista que veio do meio rural pronto para lutar pelo título não se faz com um mero içar do cinto premiado ou pelo ding dong final do sino. Os momentos em que concentramos a “felicidade” inerente da personagem principal, em transmissão com a audiência, é a sua ingénua disposição para o romance (não com o desporto, mas com a sua rapariga), tão tímido que parece apagado no meio desta insuflação de um campeão, mas que ganha força como inevitável prémio de consolação perante o tão iminente fim.

‘Olli Mäki é em todo o caso um anti-Rocky, uma afronta às mensagens inspiradoras, ao lema de “seguir os nossos sonho” mesmo que o nosso redor diga exactamente o contrário. Kuosmanen atira-nos para um poço sem inocência, a um desporto motivado pela onda capitalista, pela criação de uma fantasia anoréctica em prol de uma população desesperançada, forçada a risos contrariados, para ser conduzido a um final sem sabor, onde, por fim, olhamos com algum brilho para a sua verdadeira ingenuidade – o amor impera apesar das contradições e é nele que se acredita. Por um lado, queremos acreditar na beleza e paixão trazida por um Rocky, porém, devemos lembrar que o boxe é como a vida: há que saber como bater, mas acima de tudo há que aprender como levar, cair e levantar.

As vantagens de ser “invisível”

Hugo Gomes, 22.06.17

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A atriz e agora realizadora Tereza Nvotová aposta nos dramas profundos da adolescência para tecer uma primeira longa-metragem. O resultado é um filme sobre os mistérios da essência “teenager”, sem com isso orquestrar um retrato coletivo e de exemplaridades, visto que a singularidade reina e, com ela, nasce uma ligação bastante mórbida e incompreensível da flor-da-idade.

Filthy” leva-nos a essa atmosfera de jovens e dos seus mundos em parábolas, porém, o sentido trágico cerca a nossa protagonista, já problemática por natureza, impedindo-a de “florescer” numa sociedade reprimida pela “invisibilidade”, pela pressão de um futuro estável e pelas tentações cada mais vez mais precoces da chamada atividade sexual. Mas a nossa jovem, bem poderia ser uma qualquer, um exemplo sem rosto e nome a servir de modelo para um elo identitário ou simplesmente etário. Na verdade, há um conflito que a persegue, e uma trama que tenta encontrar um sentido por meio de uma crítica ao redor e não ao indivíduo central (os adolescentes serão sempre os menos credibilizados consoante as situações), por isso o nosso exemplo tem uma cara e, sim, um nome, chama-se Lena … e ela tem um segredo.

Nvotová consegue por alguns momentos uma sensibilidade de cortar-a-faca aos propósitos emocionais da protagonista, aos silêncios constrangedores que por vezes opta, pelo seu percurso dificultado pelo próprio didatismo. Sim, ela invoca ocasionalmente essa compaixão, esse reconhecimento, mas há ausência … a falta de ir mais longe do que nos entregar em mãos uma anorética narrativa sem transgressividade, nem a rebeldia simbiótica de um adolescente para com as convenções estabelecidas. Por outras palavras, ficamos com a sensação de “Filthy” se contentar com o modelo de realismo formal, pelas palavras não ditas e pela resolução de conflitos facilitados para agendar-se num existencialismo de “fogo-de-artifício”.

Eis um filme que vale pela tentativa, pela entrada na liga das longas-metragens, e pela ausência de ambição em entregar-nos algo único, ou personalizado. Fiquemos então com os desempenhos, pela força “invisível” da jovem Dominika Zeleníková que nos conduz a esta meia jornada.

A Mão Invisível que esmurra o proletariado

Hugo Gomes, 20.06.17

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Longe da pedagogia de um Laurent Cantet, «La Mano Invisible», de David Macian, é um espectáculo sobre o trabalho precário e da nossa submissão. Um experimento sobre a dignidade do trabalhador e do ciclo repetitivo que se tornou este dilema de "trabalhar até morrer". Um exemplar espanhol que tão bem poderia dialogar com o nosso português «A Fábrica do Nada». Dois filme politizados e longe do formalismo documental que se poderia ter suscitado.

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