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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As Amazonas do Sul

Hugo Gomes, 30.05.17

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O que realmente falta a este novo cinema americano, é a sua destreza na provocação, é a escapatória dos moldes implantados pela indústria, mesmo que, no caso de Sofia Coppola, ela represente uma espécie de outsider do badalado cinema mercantil. “The Beguiled” é a quinta longa-metragem da filha do lendário realizador de “The Godfather” e “Apocalypse Now”, uma aventurosa que tem vindo a emancipar-se da sombra do seu pai e desta forma difundir a sua voz no legado cinematográfico de Hollywood.

A conquista desta feita é um filme de 1971 de Don Siegel, protagonizado por Clint Eastwood, decorrida numa América mergulhada na sua Guerra Civil, onde um soldado da união, ferido, é acolhido e tratado por uma jovem rapariga sulista numa escola feminina. A referida obra espelhava uma guerra que se travava a metros do cenário da ação, uma casa onde se debatia dois lados ideológicos, assim como dois géneros em plena dominância. Contudo, bem verdade, que a versão de 1971 adquiria um rígido tom masculino, um filme sobre uma violência invisível que nos levaria, a certo ponto, à demonização da própria mulher. É aí que Sofia Coppola tem as armas perfeitas para expor a sua visão enquanto mulher.

Notavelmente verificamos essa perspectiva por uma câmara focada nesta comunidade de “amazonas”, mulheres restringidas ao seu refúgio enquanto homens combatem as suas politicas. Averiguamos que o sexo masculino, por mais diferente seja a farda, continua, no seu fundo, como um ser de ambições dominantes, um verdadeiro elemento alfa em construção. Os dois filmes dialogam um com o outro nesse sentido. Porém, a versão de Coppola sai a perder num determinado ponto, é demasiado anorética.

Uma hora e meia é pura velocidade, o espectador nunca consegue ter a noção de espaço nem de tempo do filme, nunca chegamos a conhecer verdadeiramente estas personagens (e aqui não se trata de mistério, é mesmo falta de ligação) e nota-se, verdadeiramente, um senso cosido do politicamente correto. É um filme inofensivo que se quer fazer grande, mas que esquece do ainda mais óbvio, de emanar a sua própria ideologia, a capacidade de estabelecer um clima de conflito, quer interior, quer exterior. Sofia Coppola torna-se incapaz de tal coisa e o mesmo se aplica à sua relação com a violência. Os actos cometidos poderiam ter o mesmo conteúdo que uma banal conversa de café, não se vive, não se sente, não se respira, é pura automatização (ainda há quem acuse de Tarantino ter tornado tal num gesto confundível a quotidianos).

Contudo, Coppola significa estética, a fotografia trabalhada e agradavelmente primitiva, a luz das velas que aquecem a mais densa escuridão (“The Beguiled” encontra-se no mesmo território que um “Barry Lyndon”), os bosques que não são mais que fronteiras para uma Guerra a acontecer longe, os canhões ouvem-se constantemente. Nesse sentido, entramos noutro atributo de “The Beguiled”, o som. O eco que intrusa nos diálogos das personagens, assim como os passos ocasionais que nos atribuem um plano sugestivo de espaço sonoro (pena que ela não consolide isso com a narrativa).

The Beguiled" é isso mesmo, uma produção construída sob adereços, sob cores e ruídos, mas o vazio acaba por reinar nesta guerra entre sexos. É pena, porque o filme de ’71 precisava do seu sexo oposto, com igual capacidade para transgredir. Longe do memorável.

Na centrifugação do cinema político

Hugo Gomes, 29.05.17

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As Máquinas não podem parar, e o Cinema deve acompanhar todo esse processo de auto-sustentabilidade. “A Fábrica do Nada”, a quarta longa-metragem de Pedro Pinho, é esse conceito simultâneo de fazer cinema e falar de política, um retrato de um ativismo em pleno passo de reflexão. Trata-se de um filme baseado na peça de Jorge Silva Melo, por sua vez inspirada na experimentação de auto-sustentabilidade da fábrica de elevadores Otis, durante 1974 – 2016, uma ideia de absoluta esquerda a invocar os fracassos de Torres Bela.

Quando a austeridade avança ameaçando postos de trabalho, os trabalhadores tomam conta da fábrica, expulsando os seus patrões e operando através de didatismo. O “Nada” do título, é essa espera que intervala entre o “golpe de estado” e o fim do sonho esquerdista, bem como a discussão política, um avante anti-capitalista que resulta na própria consolidação com o movimento globalizado. Pinho trabalha essas ideias dando-nos um cinema que, acima de tudo, é um próprio experimento, incutindo a ficção como uma anestésica perspectiva quase mundana a uma ciência que muitos parecem evitar – a política. Sim, “A Fábrica do Nada” é para além de mais, um filme politizado que aposta numa duo-linguagem para a difusão da sua própria mensagem.

É a docuficção, como Portugal sabe muito bem fazer, em que cada caminho serve-nos como um atalho (a ficção) ou o prolongado e completo (documentário). Em certas alturas, Pinho inspira-se em Miguel Gomes para incutir a sua veia de crítica, não por via da sátira, mas na objectividade das suas imagens. De tal forma que “A Fábrica do Nada” espelha uma breve história dos gestos políticos que assombram a nossa Nação, do outro lado ele resume as tendências cinematográficas do nosso panorama recente, inclusive a nossa persistência em reter as memórias em forma de imagens. É como se a película (neste caso o digital) conservasse e servisse de uma extensa voz para estes silenciados.

O final não é eterno, mas terno, é a declaração que esperávamos imensamente no nosso Cinema, a vontade de falar politica, politizar-se, sem se definir por uma esquerda, por uma direita, por um centro, ou qualquer outro lado. Fala-nos de experiências, mas nunca de posições, nem de oposições. Apesar dos eventuais discursos resultarem em impasses de uma linguagem mais directa e menos cientificada (tal como acontecera no anterior “A Cidade e as Trocas”, Pedro Pinho receia o desperdício na selecção de imagens), “A Fábrica do Nada” é um filme obrigatório para qualquer português, e não só … Uma obra dedicada e envolvente.

"Quero Viver!"

Hugo Gomes, 28.05.17

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Descansa soldado, a luta interrompe para o provisório repouso.’ Eles são os militantes ACT UP, defensores do slogan “Quero Viver”, mais que isso, um ativismo fortemente instituído numa sociedade discriminatória que prefere olhar de lado do que atentamente perceber o seu redor (a questão dos seropositivos na entrada de 1990, subjugados às negligências e ao desdém político-social). São os soldados dessa luta inglória, até porque aquilo que rogam é simplesmente uns anos mais, uns dias mais, ou, para menor das causas, umas horas a mais. Mas agora tal não interessa. A batalha intervalou. Recomeça amanhã. Os corpos dos combatentes bailam freneticamente ao som do escapismo, a “batida” que lhes invade as mentes, conforta o espírito, e porque não, o físico vigilante, preparado para mais uma ronda. Mas o corpo destes não é mais que um mero velcro, um casulo onde moléculas interagem, vivem, nascem, morrem, ou simplesmente presenciam o Momento. Com a respetiva vida por um fio, o viver o momento é o mais forte dos prazeres.

Por entre folias e o percurso de punhos erguidos, “120 Battements par Minute” faz-se por um ritmo inconstante, uma partitura de guerra onde o rancho dos soldados tombados, ou em vias de tombar, adquire uma importância dimensional neste eterno confronto. Depois de “Eastern Boys”, o franco-marroquino Robin Campillo regressa ao universo Queer (talvez nunca tenha saído de lá), palavra que os meros adeptos de etiquetas persistem em catalogar. Mas o que vemos não é um enésimo caso “armareado”, é um coletivo retrato de todos nós. Fora géneros e orientações, “120 BPM” é um filme sobre a celebração da vida e o quanto queremos residir nesse “bailado”. Até a morte, maioritariamente induzida como assombração, revela-se uma celebração quando surge, anunciando a chegada de uma nova etapa. Se a vida é na realidade uma compostura de etapas, daquelas que nos comprometem com novos desafios, objetivos e porque não, amores, “120 BPM” usufrui desta metamorfose cíclica de forma a estruturar uma narrativa aberta, sem a recolha de moralismos-objetivos, mas o de simular a vida em mudança através do seu ritmo desalinhado.

Desalinhado … e sob a luz de diferentes cocktails. A hibridez dos teores ocasionalmente nos proporciona uma transposição de imagens, transportando o espectador para além das dimensões. A danceteria que se converte gradualmente num ensaio de moléculas, representações viventes que se estabelecem ou desintegram. A beleza desta experimentação estética condensa a sentença destes guerreiros condenados que se refugiam, temporariamente, numa bolha social.

Determinados em defender a igualdade, a possibilidade de conservar a vida que possuem em prol das mudanças do seu sistema social, uma contradição vista que “120 BPM” é uma obra de extremo contágio com os solavancos da longevidade (o destino que nos espera ou que nos faz esperar), e que encontra em Nahuel Pérez Biscayart o melhor dos peões, nessa submissão pelas mesmas e gritantes nuances. E assim, depois do conflito que intercala esse mesmo trilho, os soldados repousam mais uma vez. Não basta somente combater. Há que aproveitar esse sabor de utilidade e instituir nele um código. A vida tem destas coisas e, de certa maneira, o Cinema também.

O homem que quis ridicularizar Godard

Hugo Gomes, 23.05.17

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Há que admitir a coragem de Michel Hazanavicius em “biografar” aquele que para muitos é um Deus vivo da 7ª Arte. A repudia é iminente, visto que este estudo de um homem que decide reinventar-se, mais do que ele próprio, o seu cinema, soa como uma heresia de tal tamanho, e maior, tendo em conta o tratamento acordado nesta demanda antipessoal.

Encarnado por Louis Garrel, filho de um dos realizadores que mais estima tem por Godard, Philippe Garrel, o cineasta-representação é uma espécie de clown, um herdeiro indigno do slapstick do Buster Keaton ou das vontades de ridicularização de um Monty Python. Ele é uma “pinatta”, pronta a ser verdascada por Hazanavicius e pelo público. Cuspido como uma caricatura, uma imagem generalizada do gigantesco ego, porém, é aqui que reside o maior trunfo deste “Le Redoutable”, a ousadia de transfigurar algo divino, algo intocável, não ceder ao “crowd pleaser” de veneração ao ídolo.

Em entrevista, Hazanavicius falou que por vezes grandes artistas são péssimas pessoas. Não cabe a nós julgar Godard à distância, mas a História é a favor do criador de “Le Redoutable”. A sua instabilidade, o seu narcisismo, a sua obsessão pela afirmação no circuito artístico e político, elementos que contribuíram para a criação de novas linguagens cinematográficas, novas visões para além da narrativa, e ao mesmo tempo o levaram gradualmente ao registo eremita que os seus últimos filmes tem indiciado (convém salientar que não o perdoamos pela crueldade causada a Agnés Varda, captado em “Visages, Villages”).

Mas a crítica ácida e de coñojes termina aqui. O filme entra num registo de autodefesa, uma auto-humilhação para ser mais claro. Enquanto tenta estabelecer uma espécie de meta-cinema para esse propósito, assim como a personificação de Louis Garrel aclama tratar-se de um “ator” e não o “verdadeiro Godard” (reforçando com “ainda por cima um mau ator”), Le Redoutable adquire uma insegurança em seguir avante a sua ideia, em recear o culto godardiano munido de tochas e forquilhas pronto para o tumulto.

Depois há ainda a tendência de mimetizar os maneirismos dos filmes do “homenageado”, remetendo a um “La la Land” referencial, a um doce tranquilizador das fúrias estabelecidas. O resultado dessa brincadeira de parecenças é insuficiente, “espertalhona” e ao mesmo tempo míope, reduzindo toda uma cinematografia (anos 60) para adereços bibelôs. Porém, acima dessa leveza, existe Stacy Martin que se afigura como a atriz Anne Wiazemsky, a relação perturbada de Godard, e cujo esforço trespassa a previsível caricatura.

Lanthimos, o caçador furtivo sem clemencia

Hugo Gomes, 22.05.17

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Yorgos Lanthimos incomoda, tira-nos o chão das nossas morais, desafia o politicamente correto e sob o jeito meticuloso e calculista conduz o espectador numa viagem para o além sentido. “The Killing of the Sacred Deer” é um filme frio, na sua teoria, onde as personagens, como é hábito na sua filmografia, comportam-se de forma mecanizada, operadas por um texto que não lhes condiz e movimentando planejadamente cada gesto.

Mas ao contrário do anterior “The Lobster”, a nova aventura de Lanthimos adquire um surpreendente sentimento de frivolidade colmatada, as personagens tentam gradualmente sair dos seus velcros, sonham alcançar a humanidade não reconhecida dos seus “bonecos”, até porque o realizador opera como um psicopata, psicologicamente falando, conhecendo as barreiras das éticas ocidentais e mesmo assim transpondo-as de livre vontade. Verdade seja dita, “The Killing of the Sacred Deer” não está longe do território do cinema de terror, muita vezes desafiante nessas questões morais, mas não estamos a referir um filme de terror, estamos a falar de uma estranha distopia de Lanthimos – não outra sociedade alternativa, e sim, a nossa realidade onde um elemento “alienígena”, algo impróprio, parece criar as suas raízes.

Tudo começa com um cardiologista (Colin Farrell), de família feita (esposa e dois filhos), que visita constantemente o filho de um falecido paciente, provavelmente culpado pela sua morte. O rapaz (Barry Keoghan) apresenta traumas psicológicos, o espectador fica na dúvida quanto a esses mesmos tormentos, até porque os maneirismos anormais confundem-se com a “normalidade” a lá Lanthimos (e do sempre colaborador argumentista Efthymios Filippou). Contudo, chega o momento em que percebemos que estes ciclos pretendidos corrompem-se quando o cardiologista é ameaçado por uma escolha. A escolha que o fará redefinir novamente como humano sentimental, ou talvez expondo a sua frieza no seu estado mais puro e esterilizado. Sim, essa escolha, essa difícil escolha requer a morte de um ente querido, e apenas ele terá que anunciar a sua mesma morte.

Lanthimos continua com o seu estilo obcecado pela estética, quase kubrickiana. Esta, limpa e mecanizada, uma banda sonora esquizofrênica (entre o rompante e minimalista, a condizer com o espírito do filme), personagens atípicas e aparentemente sem sopro de vidas, reféns da sua sociedade. A inovação de “Killing of the Sacred Deer” advém desse gradual rompimento com as suas próprias regras, conservando ainda o seu modo de provocar de maneira subtil, mas enganosamente explosiva o público. A vingança confrontada sob outra perspetiva e uma atormentada Nicole Kidman são os tiros certeiros para a morte deste “veado sagrado”.

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