Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os 10 Melhores Filmes de 2016, segundo Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 31.12.16

Como já é habitual, eis a resolução de 2016 com os 10 melhores filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando … Chineses a aprenderem a serem chineses, juventude inconstante, animações de tira o fôlego, oitos desprezíveis e uma casa e o mais belo filme de guerra (sem guerra) dos últimos anos.

 

#10) Mountains May Depart

12MOUNTAIN-master768.jpg

O agridoce drama de Jia Zhang-Ke prevê um fim da cultura chinesa e o expansão completa do Ocidente globalizado e heterogéneo. Mas para além da sua crítica evidente, principalmente no terceiro acto onde adquire tons de distopia, Mountains May Depart é o reencontro com as raízes que muitos tendem em abandonar. Para além disso, eis a grande ressurreição de Go West, de Pet Shop Boys

 

#09) Kubo and the Two Strings

_methode_times_prod_web_bin_3fe90068-75c0-11e6-8b1

Como já havia escrito, é puro cliché salientar a árdua tarefa de stop-motion e o esforçado trabalho que os estúdios Laika tem vindo a demonstrar nestes últimos anos. Kubo and the Two Strings é mais que um portento técnico-visual, é uma fábula encantada de "triste beleza" que nos dialoga sobre a perda e como superá-la por vias de outras curas. No campo das animações direccionadas para toda a família, tal mensagem é valiosa e por vezes evitada por motivos comerciais.

 

#08) American Honey

Brody-American-Honey-1200.jpg

Os jovens de Dazed and Confused tiveram filhos, e esses "rebentos" povoam agora o universo de American Honey, um país onde a doçura não mora aqui, o que não evita as suas personagens procurá-la. Na América de Trump, estes rebeldes sem causa seguem por estradas milésima vezes caminhadas ao som das suas regras como um tribo de "meninos perdidos" de Peter Pan. Entre os peregrinos encontramos a revelação Sasha Lane, que sob as ordens de Andrea Arnold, desbota uma emoção algo perdido numa demanda ausente de tais vencidos sentimentos. A viagem não será para todos, principalmente para quem ingenuamente acredita que a juventude é sagradas e imaculada na sua inocência.

 

#07) L'Attesa

movies-042916-latessa-superJumbo.jpg

Piero Messina constrói um filme de gestos e de olhares, onde a perda tenta ser lidada por entre os silêncios. Os diálogos são raros, mas a espera é intensa, por entre uma atmosfera magnética e duas actrizes que se complementem numa só causa, L'Attesa (A Espera) é o mais recente filho de Persona, de Bergman, é o cinema de mulheres fragilizadas na descoberta da sua posição anteriormente questionada. 

 

#06) Saul Fia

SAUL_FIA_SON_OF_SAUL_Still.jpg

O horror acontece na porta ao lado, o medo atinge a sala oposta e o pânico é evidente pelo qual o nosso olhar desvia, ignorando o pesadelo que vivemos. Saul Fia (O Filho de Saul) atinge com uma abordagem improvável no cenário do Holocausto, revisitando os Campos de Concentração para uma perspectiva nada pensada anteriormente. Adeus dramalhões de puxar as lágrimas, até breve cinema estampado no preto-e-branco, bem-vindo Filho de Saul, a citar Primo Levi, a busca da Humanidade onde esta parece ter sido abandonada. 

 

#05) Elle

Elle 2.jpg

Isabelle Huppert constrói em cumplicidade com o agora valorizado Paul Verhoeven uma das mais consistentes e complexas personagens femininas do cinema de 2016. Uma mulher refém do seu desejo, mas forte o suficiente para superar qualquer obstáculo inserido, é a carne e a fantasia unidas ao encontro de um só corpo, um thriller que parece emancipara-se das suas próprias raízes e por fim, dignificar a "vitima" e não o predador. Será Elle a obra-prima há muito pedida de Verhoeven? Só um o tempo dirá, novamente. 

 

#04) Anomalisa

Brody-Anomalisa-1200x630-1451402777.jpg

Tendo como inspiração uma peça teatral, Charles Kaufman e Duke Johnson insuflam vida nestas marionetas para a concepção de um enredo de colectividade, onde o individualismo, essa particularidade vivente em cada um de nós, é uma jóia a ser "desenterrada". O Mundo parece igual a si mesmo, todos parecem exibir a mesma face, as mesmas doutrinas, as ideias empacotadas como ovelhas em rebanho. Depois de A Grande Beleza, de Sorrentino, Anomalisa é esse ensaio existencialista que secretamente ansiávamos. 

 

#03) El Abrazo de la Serpiente

serpiente2.jpg

Ciro Guerra explora um desconhecido universo. A indomabilidade da Amazónia alastra em todo um filme, conduzindo esta história contada em duas vozes e em dois tempos para territórios místicos, quase pagãos que renegam as culturas e crenças de fora. É o desconhecido que nos espera em cada margem do rio Amazonas, é o caos, a loucura, a peste, a febre e por fim, a harmonia encontrada no segredos dos segredos, residido no mais alto cume. A selva também sabe contar histórias. Histórias essas, que reflectem a actualidade do nosso Mundo e para onde caminhamos como seres humanos. Esquecimento, essa terrível maldição, não será imposta aqui neste brilhante filme.  

 

#02) The Hateful Eight

image-w1280.webp

Podem considerá-lo violento, regido ao universo que ele próprio criou através de "migalhas", nada original, reciclável e até vendido. Podem apelidá-lo do que quiser. Quentin Tarantino merece a atenção. O realizador de Pulp Fiction persiste nos temas focados no seu anterior Django para exercer um western gélido que tem como palco o passado, o presente e o futuro de uma Nação. É como "Um Conto de Natal", neste caso, Um Conto de Tarantino, rodeado de personagens taraninescas que despertam o mais profundo jubilo cinéfilo. Longa Vida a Tarantino

 

#01) Cartas da Guerra

35407_48046_15033.webp

Sei que existe o senso colonialista dentro de nós, mas este não é um filme colonial, nem sequer de guerra. É um romance à distância, a da condição do soldado confinado à sua própria solidão, aquela prisão invisível induzido por politicas de outros. É a extrema luta de manter sóbrio perante um mundo bêbado que nos assiste. Ivo M. Ferreira invoca o verdadeiro soldado, não a máquina implacável de guerra implementada pelos prolongamentos do Call of Duty, mas de um homem "barricado" nos seus pensamentos, na saudade de uma outra vida que não seja aquela, mesmo sabendo que pouco sabemos como vivê-la - A Vida Civil.

 

Menções honrosas: O Ornitólogo, O Boi Néon, Evolution, The Childhood of a Leader, The Lobster, O Olmo e a Gaivota

O credo do assassino ... assim se faz uma adaptação

Hugo Gomes, 27.12.16

FB_IMG_1584297916022.jpg

Sobre o filme de Assassin's Creed? O macguffin é parvo como tudo, as personagens estão somente à mercê do esforço dos actores e os visuais, para além de deslumbrar, são demasiado escuros, o que poderá prejudicar a experiência. Mas ... e porque há sempre um mas, existem atributos invejáveis nesta produção e Michael Fassbender, novamente como o "homem mais sofrido do planeta", vale a ida ao cinema. Não é a pior coisa do Mundo, aliás realça a grande fraqueza do jogo (só joguei 5 min e desisti) que é a vertente de ficção cientifica. Série B, profundamente B.

(E)Star Wars

Hugo Gomes, 16.12.16

star-wars-donnie-yen.jpg

Há quem ainda acuse George Lucas de ter sido o “cancro” de uma saga tão querida para milhões. Desde a suas remasterizações e “remexidelas” na trilogia original em múltiplas edições de home video, até aos três filmes produzidos entre 1999 e 2005 que atualmente é esquecido por muitos. Mas não devemos ignorar, que apesar do resultado, Lucas tentou expandir o Universo que ele próprio criou com alguma inovação, quer tecnológica, quer narrativa.

Porém, vivemos num Mundo onde a personalidade parece ser condenável, e depois de uma homage algo cobarde (diga-se por passagem), por parte de J.J. Abrams, chega-nos o intitulado “Rogue One”, uma referência no scroll credits de 1977 que originou um filme sob tons bélicos e de tamanha “piscadela de olhos” a temáticas políticas. Enfim, políticas e Disney nunca se misturaram, relembro o caso de “Captain America: Civil War” onde super-heróis disputavam entre si consoante as suas fraudulentas ideologias. Neste “Star Wars”, tal é o fogo brando do extremismo oriental, como muito media ocidental parece insinuar, e o liberalismo em acordes de guerrilha-ativista, que tenta soar com seriedade neste “world building” formatado.

Contudo, “Star Wars” não é uma distopia política sob o formato de sci-fy, é simplesmente a tentativa de vender e extrair até à última gota uma memória, uma nostalgia e um sentimento que muitos guardam fervorosamente dentro de si. O resultado não é um filme francamente mau em termos técnicos (tirando o uso e o abuso do motion capture para a ressurreição de personagens vencidas, até porque “Peter Cushing is not alive anymore“), é sim, uma réplica, uma obra despersonalizada exercida sobre personagens de tamanha causticidade na sua concepção. Nada de sólido, só “carne para canhão“.

Depois temos os inevitáveis cameos, o fan service a vingar sobre os fãs, e um enredo rotineiro que joga-se forçosamente na cronologia estrelar. Para nosso encanto, é mesmo Ben Mendelsohn a perpetuar como vilão de serviço (mas já está na hora de abandonar a “sacanice“), e a banda-sonora saudosista de Michael Giacchino que segue a tradição de John Williams. Mas fora isso, é a indústria megalómana comanda, transformando, o então astuto Gareth Edwards (que ressuscitou com algum evocativo agrado “Godzilla” em terras estadunienses), num mero “moço de recados“.

Temos que perdoar os pecados de George Lucas, ao menos ele trouxe uma breve sensação de novidade a um franchise, que não inventou o Cinema como muitos acreditam, mas que redefiniu os moldes do entretenimento cinematográfico para grandes massas. Sim, os fãs vão “venerar“, mas “Rogue One” nada de relevante tem para o Cinema, e isso meus amigos, em épocas de produtos bem “lubrificados“, não é nada.

O cinéfilo e a solarenga tertúlia da desilusão

Hugo Gomes, 15.12.16

tagv.pt-os-belos-dias-de-aranjuez-os-filmes-de-wim

Qualquer cinéfilo que se preze é incapaz de se conformar com as descrições de “arte menor”, ou “não arte”, assim como “mero entretenimento de feira”, o qual são dirigidas ao Cinema em geral. O verdadeiro cinéfilo nega, com todas as suas forças, a franqueza e simplicidade face em comparação com as outras artes. O cinéfilo é impuro, por vezes limitado à sua verdade, mas ao invés disso do que desprezar o amor pela Sétima Arte, nunca abandonando-o à sorte do menosprezo artístico. E se para muitos o Cinema não possui a profundidade da literatura, o uso imaginativo do “faz-de-conta” do teatro, a contemplação divina e quase artesanal da pintura, ou a monumentalidade da arquitetura, para o cinéfilo é nada mais, nada menos, que a fusões de todas essas plataformas artísticas, o filho bastardo que aos poucos toma o seu lugar.

No entanto, abandonada a oligárquica ideología de cinéfilo, sabendo que o Cinema não é par para a literatura e à dramaturgia, Wim Wenders aventura-se num extremo jogo “faz-de-conta”, experimentando uma adaptação de uma peça de Peter Handke (o dramaturgo, e fiel colaborador, tem um pequeno papel neste filme) para superar as limitações que inicialmente o colocaram. Infelizmente, Wenders cede à “burguesia” de um cinema erudito, tentando sobretudo apoiar-se nos textos que, para sua desgraça, não contrai a poética sonoridade nem os ecos de filosofia citada. Se o cineasta alemão tenta percorrer Eric Rohmer neste seu quadro vivo, esta prova auto-rejeita-se, os diálogos não foram o seu forte muito menos a proclamação destas prosas faladas, despejadas sem a orgânica, nem compostura.

Porém, Wenders brinca com as dimensões, atropela-se nas plataformas artísticas que ele próprio cita e tenta dar luzes a uma fértil amostra imaginativa, uma alusão da criação térrea de uma realidade. Assim, são duas que se embatem e dispersem, vidas artificiais pulsadas pelo toque do seu criador na sua máquina de escrever. Jens Harzer é um Deus para estes seres preenchidos por linhas, mecanizadas nas suas palavras, e é então que o improviso surge, os fatos que alteram a cor consoante a vontade do mentor, as falas que são interrompidas pelas mudanças musicais … e novamente a realidade paralela a funcionar quando entra Nick Cave em cena, a música pode ser o nosso álibi imaginativo.

WW-Aranjuez_Jens-Harzer_copyright-alfama-films-pro

Mas o nosso leitor questiona neste preciso momento, do que se trata este “Os Belos Dias de Aranjuez” ("Les beaux jours d’Aranjuez”)? A resposta esconde-se por entre estes artifícios manipuláveis, Wim Wenders tenta reinventar o seu cinema, colocando e transcendo das suas limitações enquanto criação visual. Obviamente, que esta nova obra não goza desse statement artístico, pelo contrário este retrocedo a um cinema burguês o coloca na pista de onde o seu cinema evoluirá. Tal como o relato de uma das suas personagens, durante uma viagem a Aranjuez, a desilusão o tomou ao ver que a chamada “Casa del Labrador” não passava de um anexo no Parque Real, mas é nas groselhas, outrora domésticas, que adaptaram-se ao assilvestrado do meio, expandido e tomando o lugar das amoras e outros frutos que habitavam nos bosques para além do Tejo. Por outras palavras, Wenders descarta o seu cinema, assume a arte de outro e espera que esta tome a sua forma. Trata-se de cedência para mais tarde evoluir. Esperemos que sim.

Contudo, o cineasta alemão tem sido dos poucos que tem associado o 3D ao cinema dramático, “despindo” das suas conotações circenses, porém, faltará uma maior emancipação para que sinta o uso dessa mesma tecnologia.

Star Wars está morto?

Hugo Gomes, 14.12.16

FB_IMG_1584298516266.jpg

O que dizer sobre o novo Star Wars? Um fan film com orçamento milionário, alicerçado em múltiplos fan services, com a Disney e a politica a serem incompatíveis como azeite e água e a tentativa de tragédia grega à lá Vingança do Sith a cair pelo "cano abaixo". O que resta é toda uma oleada fórmula "wanna be". Na saída do visionamento houve quem dissesse que "Star Wars estava morto!"

Kimi Takesue: "A arte é um luxo a ser procurado"

Hugo Gomes, 12.12.16

95_AND-6_TO_GO_Tom_Takesue_key_image_cropped©Phot

Kimi Takesue emocionou o Doclisboa ao abrir a “porta da sua casa” e mostrar ao Mundo o seu avô Tom, que mesmo com os seus 95 anos apresentou uma tremenda força de viver e coragem face à iminência da Morte. “95 and 6 to Go” é um trabalho conjunto, pessoal e de constantes descobertas e introspecções, fruto de uma espera que motivou uma interação inesperada. Retrato de família, ou o consolo na preservação de memórias como uma cápsula do tempo, Takesue falou-me sobre o projeto (e os projetos) e mais do que tudo, sobre o seu avô, a verdadeira alma deste filme.

Em que preciso momento encontrou no seu avô um motivo para um filme?

Em 2005, durante as minhas férias, visitei os meus avós no Hawaii. Nessa altura encontrava-me entusiasmada com o meu atual projeto. Estava a desenvolver uma longa-metragem de ficção, o qual ganhou “impulso” e foi apadrinhado por uma produtora nova-iorquina de cinema independente. Era um romance intercultural entre um escultor de gelo japonês e uma cantora de cabaret caucasiana na cidade de Nova Iorque; ambas as personagens sofreram grandes perdas e o gelo forneceu-me a estrutura metafórica para explorar o seu efêmero e fugaz caso de amor.

O meu avô leu o argumento e ficou surpreendentemente intrigado; de repente, ficou animado e começou a sugerir ideias criativas. Enquanto comia macarrão ou mastigava uma torrada, dava sugestões sobre um título cativante, músicas para a banda-sonora e um até um final feliz. Isso foi “chocante” para mim porque nunca tinha visto meu avô expressar qualquer interesse criativo. Nunca o tinha visto a ler um romance ou falar sobre arte. Ele cresceu durante a Depressão e devido a isso não pôde ir para a faculdade. Ele sempre manteve um emprego fixo nos Correios e fez um trabalho noturno extra para conseguir com que os seus filhos estudassem na faculdade. Aos meus olhos, ele era um avô pragmático e rígido que falava sobre a importância das obrigações familiares e da importância de “conseguir um emprego”.

Comecei a filmar o meu avô quando testemunhei essa centelha incomum de criatividade vinda dele, possivelmente adormecida em todos estes anos. Sabia que algo especial e desconhecido estava a começar a vir à tona e queria documentar essas mesmas descobertas.

Em 2007, após a morte da minha avó, voltei ao Hawaii para oferecer apoio e assistência. O meu avô estava longe de ser sentimental sobre sua morte e já estava disposto a encontrar uma nova companheira. O otimismo em torno do meu projeto havia, no entanto, desaparecido, e esperava que os produtores garantissem o financiamento. Foi a primeira vez que passei sozinho com meu avô; ele começou a refletir sobre sua vida e expressou seu maior medo de morrer sozinho.

Estávamos ambos em períodos de transição e perda emocional. A maior parte de “95 and 6 To Go” se passa nessa época em que nos conhecíamos melhor. Eu ofereci-lhe companhia e ele me ofereceu conselhos sobre o meu projeto. As suas francas críticas expuseram as suas preocupações em relação ao amor, ao envelhecimento e à recente morte de minha avó. O argumento se tornou o veículo para as nossas conversas e para a reflexão acerca da sua vida cheia de perdas e arrependimentos. O estoicismo emocional cuja sua vida “real” foi marcada contrastava fortemente com a sua imaginação romântica que ele idealizada e projetava no guião.

E o seu avô já sabia que iria virar filme?

Fiquei fascinado com o meu avô porque ele era realmente um sujeito não autoconsciente. A presença da câmara não o mudou em nada; ele foi absolutamente incensurável quanto à sua apresentação. E, no entanto, intermitentemente, avisava que ninguém deveria ver a filmagem. Chegou mesmo a ameaçar me deserdar se eu o desobedecesse e, ora, levei a sua ameaça bem a sério.

Ele queria proteger a sua privacidade pessoal, mas também observava uma forte norma cultural. Como japonês, nunca se deve expor a sua “roupa suja” em público ou, mesmo, chamar a atenção para si mesmo. Enquanto reunia as filmagens, pensei que, no final das contas, seria apenas uma história familiar pessoal inédita. Não foi até pouco antes de meu avô morrer que ele me deu permissão para fazer o filme e também forneceu o título que “resumiria” a sua vida. Essa mudança de opinião foi ainda mais pungente porque ele passou anos a tentar encontrar o melhor título para o projeto de ficção e, no final, encontrou o título para a sua própria história de vida e para o seu próprio filme.

horizon_line.jpg

Tom e Kimi Takesue

No fundo, “95 and 6 to Go” é sobre um homem que se recusa a morrer?

Fiquei muito inspirada pela perseverança e determinação de viver do meu avô. Apesar de todos os desafios e reveses emocionais/financeiros na sua vida, ele permaneceu fundamentalmente otimista. A cena do Consumer Reports é reveladora porque revela como imponho uma renúncia ao meu avô. Ele estava animado com a perspectiva de renovar a sua assinatura do Consumer Reports, mas eu perguntei: “O que é que ainda quer comprar?” insinuando o pouco tempo de vida que ele tinha, então qual seria o ponto? Mas o meu avô não estava resignado; sempre olhou para o futuro.

O Vovô Tom era extremamente forte mentalmente e fisicamente. Na cena inicial do filme, nós o vemos, como um homem de noventa e dois anos, fazendo sessenta flexões. O seu corpo cede lentamente, mas ele se recusa a desistir. A foto demonstra a sua determinação feroz de viver, permanecer forte e autossuficiente. Ele não apenas estava em boa forma física, mas a sua mente permanecia afiada e convincente. Muitas vezes as representações de pessoas idosas enfatizam deficiências deprimentes. De muitas maneiras, “95 and 6 to Go” apresenta uma representação positiva acerca do envelhecimento. Fiquei impressionada com a mente afiada do meu avô; tinha a sabedoria prática de um homem que viveu uma vida longa, bem como uma imaginação profunda e criativa. Ele inventou um complicado “final feliz” para o filme de ficção, que era longo e detalhado. Mesmo quando ele estava no hospício, anos depois, próximo da morte, foi capaz de descrever a sua versão do final cena por cena, momento por momento.

A morte aproximava-se do meu avô ao longo do filme, mas ele se recusou a sucumbir à autopiedade, cumpria os seus rituais diários e prestava homenagem aos mortos, deixando oferendas de comida no santuário da família. Ele foi capaz de se desprender emocionalmente e avaliar clinicamente as fotos de minha avó, flagrada de todos os ângulos, deitada no seu caixão. Recusou a permitir que a morte da sua filha o impedisse de dançar. Nunca aprendeu a amar com ternura, ou com delicadeza; assim, quando ele regava as suas preciosas plantas, as esmurrava com uma forte corrente de água. Fiquei fascinado pelo seu profundo desejo de amar, porém, exibia uma incapacidade de se conectar com os seus sentimentos e de expressá-los aos outros.

Sente falta dele? Ou segue o conselho dele, o de esquecer as tragédias e continuar vivendo?

Tenho muitas saudades do meu avô e da minha avó. Os meus avós me conectaram com a minha herança japonesa e proporcionaram um lar caloroso, amoroso e acolhedor no Hawaii. “95 and 6 to Go” é em parte uma homenagem à minha família, mas também explora retratos familiares complexos, confusos e por vezes contraditórios. De muitas maneiras, o filme é sobre como contamos histórias de nossas vidas. Como um argumento digno de um filme, nós construímos narrativas sobre as nossas vidas e por vezes vezes temos versões inconsistentes e contraditórias.

95 and 6 to Go” também explora as memórias incorporadas numa casa física. As lembranças que tenho dos meus avós estão inextricavelmente ligadas à casa deles. No filme, eles estão vivos e presentes enquanto vão de sala em sala e vagam pelo quintal. No final, a casa está vazia e a sua ausência é profundamente sentida.

Acha que o seu avô ficaria orgulhoso deste filme?

O meu avô sofria de um profundo sentimento de solidão e de não ser amado. Ele continuamente recordava constantemente uma memória de quando era criança de não tinha mãe ou pai para “chamá-lo para jantar e tomar banho”. Apesar das suas dúvidas, acredito que o meu avô teria adorado o filme e teria gostado muito de ser o centro das atenções e ser acolhido pelo público.

95_AND-6_TO_GO_Tom_and+_Ethel_Takesue_vacation_©P

De muitas maneiras, o meu avô era invisível e discreto, até mesmo pela sua própria família. Ao fazer o filme, percebi como era fácil ignorar aqueles que pensamos conhecer, ou aqueles que estão muito próximos de nós. Existem tantas dimensões de pessoas que não conhecemos ou não nos preocupamos em ver. O argumento forneceu o ponto de ancoragem que nos permitiu conectar. De muitas maneiras, a arte é um luxo a ser procurado. O meu avô nunca teve tempo ou recursos para permitir que ele explorasse um caminho artístico, mas finalmente descobri que ele tinha uma criatividade inexplorada no seu interior.

Também acho que o meu avô teria apreciado o filme como um documento da sua geração de distintos nipo-americanos a viver no Hawaii. Existem muitas poucas representações de nipo-americanos contemporâneos que atingiram a maioridade durante a Grande Depressão, sobreviveram aos anos da Guerra, criaram famílias e serviram como espinha dorsal econômica e moral no Hawaii.

E o argumento em que você estava a trabalhar? O filme realmente existirá? Que título conseguiu?

Embora tenha sido devastador na época, afastei-me do argumento em 2008/2009. A crise econômica estourou e foi o momento de seguir o conselho do meu avô e “arrumar um emprego”. Acabei me dedicando ao ensino e agora sou professora associada titular na Rutgers University-Newark, no Departamento de Artes, Cultura e Media, lecionando produção de vídeo.

A vida e os caminhos artísticos são tipicamente cheios de digressões e contratempos, mas por vezes levam-nos a descobertas inesperadas. No final, não fiz o “filme de ficção original”, mas “95 and 6 to Go” surgiu durante o processo. É um filme íntimo e pessoal que explora uma colaboração surpreendente entre mim e o meu avô e um novo vínculo forjado por vias da Arte.

Pág. 1/2