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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Sempre teremos Paris"

Hugo Gomes, 30.11.16

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Claro que a imprensa sensacionalista e cor-de-rosa apelidará, assim servindo de publicidade gratuita, esta obra de sequela não assumida de “Mr. And Mrs. Smith”. Em derivação de tal título estão os inúmeros boatos originados pela separação de um dos casais maravilha de Hollywood, Brad Pitt e Angelina Jolie, assim como os rumores de um possível caso do ator com a atriz Marion Cotillard no set. Verdade ou não, tema, esse não nos cabe julgar perante esta nova longa-metragem de Robert Zemeckis, um dos classicistas movie brats a operar em Hollywood (mesmo seduzido pela tecnologia o qual dispõe para inserir na narrativa, e não o oposto como muito blockbuster que anda por aí).

Mas de uma coisa essa dita imprensa acertou “na mouche”, de “Mr. And Mrs. Smith”, “Allied” tenta sobretudo replicar uma química entre Pitt e Cotillard, da mesma forma que o sucesso dependente de Doug Liman fez com o “ex-casal”, em 2005. Proposta falhada, visto que, primeiro, com Brad Pitt tornou-se impossível o estabelecimento de qualquer ligação, até mesmo amorosa vérité (veja-se o caso com Jolie em “By the Sea”). O reconhecido grande galã do seu tempo, converteu-se num ator fechado a qualquer vínculo, e em consequência disso, limitado pelo cansaço de fugir ao seu verdadeiro role play (o papel de ser o próprio Brad Pitt, de intérprete a globalizada socialité). Por sua vez, Marion Cotillard é uma faca de dois gumes, nunca fora devidamente aproveitada no cinema yankee, muito menos em grandes produções como este “Allied”. Aliás, a sua personagem polariza um certo “quê”” de Ingrid Bergman em terras de Tio Sam, ou seja, um feminismo “fogo-de-vista”que esconde um real facto, ser o interesse amoroso do nosso “herói”, e neste caso específico, uma espécie de macguffin que o faz correr num último terço bem apressado.

Como é possível verificar, “Allied” é uma fita que apostou sobretudo numa mediatizada dupla, mas que não soube compor, porque devidamente, nenhum dos dois está recíproco de tal demanda emocional. Quanto a referências, Robert Zemeckis apaixonado pelo fôlego algo perdido desse cinema clássico de uma idade de ouro que nunca mais será reproduzida, cita “Casablanca” em tudo o que pode. O célebre e popularizado “monumento cinematográfico” (possivelmente a obra que destroçou “Gone with the Wind” no estatuto de filme mais reconhecido da História do Cinema) é a estrutura óssea deste thriller de espionagem que joga com a duplicidade em estratagemas amorosos.

Até mesmo um final ocorrido num aeroporto sob as juras de despedidas de dois amantes faz invocar-nos essa memória cinéfila, da mesma forma que o piano sob os acordes de A Marselha instala-se como o pico de sentimentalismo indomável, recorrendo a essa fantástica viagem do passado. Por outras palavras, “Allied” é um filme de uma dotada herança de referências, porém, sem a imortalização dos mesmos, até porque o espectador mais atento sabe que tudo não passa de uma ficção, e o nosso “Casablanca” é agora uma memória coletiva bem real, da mesma forma que Paris é, a promessa idealizada de dois dos mais poderosos românticos da Sétima Arte.

“Nocturnal Animals”: na noite todos os gatos são pardos

Hugo Gomes, 28.11.16

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Aviso desde já, que este não é "A Single Man”, o filme que marcou a estreia do estilista Tom Ford na realização, um ensaio poético sobre a perda dirigido por um Colin Firth na sua melhor forma. Sim, uma obra inesquecível, onde Ford provou capacidade para induzir-se numa carreira cinematográfica, visto que conseguiu evitar, no seu primeiro filme, os erros que muitos cometeriam à primeira.

Com “Nocturnal Animals”, a perda já lá vai, contudo, é o ensaio de uma infelicidade “bovariana” que perdura neste cheesecake cinematográfico, um filme de duas camadas que exorciza fantasmas que o próprio Tom Ford interage, simultaneamente invocando um medo quase irracional a uma América cosmopolita e burguesa, que tal como os créditos iniciais indicam, viventes de um país de excessos. Amy Adams, destroçada e vencida pela melancolia, é uma dona de uma galeria de arte que descobre que mesmo tendo tudo ao seu alcance, a sua vida é um mero vazio. Esse vácuo é perpetuado até certo ponto que recebe um romance escrito pelo seu ex-marido. Perdida nas insónias que teimam não a deixar, a personagem de Adams arranca numa leitura a este livro misterioso, o que encontra é uma intriga de vingança e de impotência que parece, gradualmente, confundir com a sua vida em ruínas.

O expoente estético de Ford é uma meticulosa arte de engano e desengano, até porque a “beleza” fingida de “Nocturnal Animals” disfarça a sujidade formal exposta na sua segunda camada do filme, a ficção por detrás da ficção, onde Jake Gyllenhaal é um homem duplamente perturbado, pela desilusão de um homem fraco e indefeso que habita no seu ser até à sede insaciável de vingança que parece alimentá-lo furtivamente. As duas camadas, tão diferentes como água e azeite interpõem-se uma à outra, sucessivamente, e aí que entra a maior falha de Tom Ford neste segundo produto, a ficção ficcionada é mais interessante que a história primária, e o pior é que sentimos que não foi preciso muito esforço para o conseguir.

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Sim, sabemos, Tom Ford quis explorar o vazio do mundo de aparências que o próprio intriga, mas é incapaz de tecer a crítica apropriadamente, mas pelo menos, faz melhor figura que Nicolas Winding Refn e a sua passerelle que fora “The Neon Demon”, simplesmente porque não cede à provocação fácil, tentando encontrar nos seus becos sem saída, uma eventual escapatória. Como cúmplice desta artimanha montada, está o elenco que consegue descolar dos bonecos que o próprio insuflou, nesse contexto as nossas atenções vão para Michael Shannon, um peixe dentro de água, cujas movimentações levam Gyllenhaal aos seus picos de indecência emotiva.

Voltando ao ponto inicial, não temos aqui um “A Single Man”, infelizmente, Ford parece ter tremido por momentos, mas não o suficiente para ceder à pressão. Ele constrói um filme de camadas, como já havia sido referido, e a gosto, coloca o seu “quê” de sugestão. O final inesperado que atraiçoa o espectador e a catchphrase, “um romancista escreve sobre ele próprio”, a persistir após o desfecho dos créditos. Afinal, há aqui margem para explorar!

Cristian Mungiu: "Nós é que redefinimos os limites da nossa consciência moral"

Hugo Gomes, 26.11.16

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Graduation (2016)

Premiado com o Prémio de Realização na 69ª edição do Festival de Cannes, Cristian Mungiu apresenta “Graduation” (“Bacalaureat”), a sua última obra que remexe novamente em consciências morais e em fantasmas do regime de Ceausescu. Este filme de fortes traços de realismo filmado, chega às nossas salas após uma passagem pelo Lisbon & Estoril Film Festival. Tive o prazer de falar com um dos grandes nomes da chamada Nova Vaga do Cinema Romeno.

Como surgiu o argumento deste “Graduation”?

Foi uma combinação de vários temas. Durante algum tempo estava determinado em fazer um filme sobre o “envelhecimento“, aquele que só acontece quando olhamos para trás e apercebemos que esse mesmo passado não nos agrada, assim encaramos o futuro com outro objectivo. Na altura, não encontrei automaticamente a história certa.

Em simultâneo, reflectia sobre a paternidade, a educação, nas minhas crianças e foi então que me surgia em mente, questões como: “o que posso dizer aos meus filhos sobre a sociedade que vivemos? Qual o tipo de futuro que queremos para elas e pode ser proporcionado?” Depois, procurei a melhor forma de expor a sociedade atual, uma relação que compromete-se através de uma sociedade corrosiva. Todos estes temas borbulhavam na minha cabeça, a partir daí decidi combiná-las num só filme, porém, como não tinha a narrativa nem a temática escolhida, peguei no meu computador e lancei-me numa pesquisa por inúmeros artigos de acontecimentos que marcaram a nossa sociedade nos últimos 5 anos.

Foram notícias, jornais, revistas, o qual rabisquei, cortei e colei, até conseguir criar um argumento que falasse de todos esses problemas sociais e que tivesse uma certa ligação real, mas que não fosse totalmente baseado em factos verídicos. Como tal nasceu “Graduation”, um filme que fala sobre o futuro, o crescimento e as nossas próprias decisões.

É possível educar as nossas crianças com uma educação diferente daquela que obtivemos?

Não sei, foi graças a essa questão, pelo qual, eu fiz este filme. Através desse dilema tentei fazer com que “Graduation” me respondesse. Será possível que o Mundo mude através de uma nova geração, sabendo que essa mesma é educada pelos mesmos ideais e valores de uma geração anterior? Sinceramente, não sei. Só sei que tal não é racional, para o Mundo realmente mudar, era preciso que essa nova geração afastasse dos seus antecessores, teria que haver um espaço ininterrupto que pudesse quebrar a corrente. Quando falo nisto, não digo que devemos negligenciar os nossos filhos, não, teríamos que sim educá-las consoante o mais adequado para uma eventual mudança, e não para o que achamos correto. Obviamente que com isto não quero afirmar que sou um mau pai, porque uma coisa é fazer da maneira mais racional possível, a outra é comprometer as nossas ligações emocionais com as pessoas que mais amamos.

Penso também que fiz este filme sobre as pessoas que são incapazes de lidar com as situações de forma racional, que se deixam levar pelas emoções. Até porque não somos personagens, somos seres humanos que dificilmente acreditamos ou questionamos aquilo que nos acontece em vida.

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Cristian Mungiu

O "Graduation" é, no geral, uma reflexão sobre os limites da paternidade?

Sim, pode ser um filme sobre os limites da paternidade, sabendo que com a paternidade surgem vários dilemas, muitos deles, não com as respostas corretas. Sabes, por vezes é fácil, enquanto pais, causar danos às nossas crianças, mesmo que isso não seja totalmente intencional, como o encarar a sabedoria como algo hereditário, que passe de geração a geração. É evidente que mesmo com a educação atenta dos nossos pais, praticamos as nossas próprias decisões e cometemos os nossos próprios erros, mas é ao tornar-nos pais que afrontamos a ideia de que podemos realmente moldar os nosso filhos consoante a nossa “educação“, ou seja, acabamos por cometer os mesmos erros que os nosso pais, e assim sucessivamente. É uma corrente.  

Educamos as nossas crianças tendo como base a educação que os nossos pais nos deram, chegando mesmo a afirmar as mesmas afirmações que os nossos progenitores proclamaram certo dia. Pensamos “nem acredito que estou a dizer isto?“. Obviamente, que também pensas como seria bom que as coisas acontecessem desta maneira, mas ao mesmo tempo sabemos que não vai seguir o previsto.

Se nós estamos a preparar as crianças para a vida real, temos que parar com o habitual discurso moralista de “não mentir“, “não roubar“, “não trair“, “não pisar os outros“, esses moldes de doutrinas são, de certa maneira, vistas como ideais de um “falhado nesta sociedade“, por outro lado, ensiná-las a ser lutadoras poderia, de certa forma, alterar essa mesma. Mas isso cabe a nós decidir, quais são os verdadeiros limites da paternidade. Conforme seja a nossa decisão, andamos de “mãos dadas” com as alterações da nossa sociedade.

Em “Graduation”, ficamos com a sensação de que a corrupção, por mais pequena e involuntária que seja, é um ato profundamente natural do Homem moderno.

Para responder a essas questões, eu cito inúmeras vezes a realidade, sem necessariamente julgá-la, nem explicá-la por demasiadas palavras. Mas julgo que essa corrupção é muitas vezes confundida com o compromisso, uma espécie de mecanismo de sobrevivência, uma adaptação aos obstáculos que nos surgem, mas ao mesmo tempo, quando somos pais, temos que carregar este “fardo”. É essa a diferença do mundo idealista, aquele, pelo qual, preparamos a nossa criança, e o mundo real.

O filme tenta investigar aos poucos esta relação, gradualmente aborda as causas da complexidade deste fenómeno [corrupção], que é algo tão fácil de julgar. “Graduation” diz que nem tudo isto é errado, até porque quando queremos ajudar alguém ou até mesmo combater um regime, praticamos estes actos “imorais“, no entanto, os encaramos como uma espécie de luta, até porque as nossas intenções são boas. Nos dias de hoje, o regime já não é mais o inimigo número um, ao invés disso, nós é que nos tornamos a grande ameaça. Nós é que redefinimos os limites da nossa consciência moral.

De regresso à sua questão, julgo que as pessoas encontram-se desapontadas devido à dificuldade, ou quase impossibilidade, de mudar algo. As coisas são o que são, e é preciso imensa energia para uma pequena mudança. Quanto à mudança total, é quase “o impossível“, que é apenas resolvida com soluções coletivas. O filme refere bastantes essas divergências entre decisões individuais, aquelas que fazemos para nós ou para a nossa família. A imigração é um bom exemplo sobre soluções individuais. Todavia, é necessário existir as ditas soluções colectivas, se não, o “barco” naufraga.

“Graduation” entra em paralelismo com um êxito seu, “4 Months, 3 Weeks and 2 Days”, onde um específico evento abala e altera toda a personagem. É este o seu modo de narrar as suas histórias, pegar em acontecimentos que drasticamente marcam as suas personagens?

Não sabemos o que vai acontecer a estas personagens após o desfecho do filme. Quem sabe? Sim, eu pego em eventos drásticos que as suas personagens vivem, mas se estas vão mudar a conta disso, sinceramente, não sei responder. Julgo que isso não acontece muito na vida real e penso que nós próprios não mudámos assim tanto, mas é com as experiências que aprendemos algo. Algo sobre a vida, sobre si mesmo, sobre a situação, sobre a sociedade, até mesmo de integração. Mas julgo que tal não nos altera em longo termo, ao invés disso, algo morre em nós, perdemos algo muito próximo, e compreendemos que vivemos uma vida, e tal evento poderá ser importante, mas que só durará 3 dias, e depois regressas à tua vida.

Por isso, não sei realmente o que vai acontecer a estas personagens, mas o espectador deve entender que eu falo sobre as suas respectivas vidas reais. Por vezes, chegamos a entender o que vivemos através de vidas encenadas no grande ecrã.  

No final das sessões dos meus filmes, mais concretamente nos QaA, ouço imensas experiências vividas pelos espectadores. Ou seja, eles, de certa maneira, identificam-se com o que está retratado. É por essas e por outras que existe o Cinema.

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Graduation (2016)

Então é, em derivação dessa aproximação, o motivo pelo qual os seus filmes devem muito ao realismo?

Faço esse estilo, porque é a minha definição de Cinema. Porque acredito que o Cinema pode ajudar, não só, a conhecermo-nos, mas também a entender os outros, as nossas vidas, o nosso redor, e para isso temos que praticar um Cinema mais vinculado no realismo, apesar da vida real não ser tão espetacular, nem entusiasmante.

E ao seguir esse mesmo estilo, temos que ponderar alguns artifícios bem valiosos no Cinema, um dos exemplos é a edição. Na vida real não há edição, por isso, o meu Cinema tem que possuir o menor uso desse mesmo artifício, toda a cena deve ser filmada num só take. Outro exemplo é a música, não existem bandas sonoras na vida real, tal não poderá existir no meu Cinema. O que tento fazer é captar a emoção através da situação, é uma tarefa árdua, eu sei, sem a utilização desses artifícios, mas é sim que pretendo continuar a fazer Cinema.

As edições rápidas, as músicas que entram e saem, as cenas de ação, são tudo factores sedutores. Principalmente para quem deseja fazer entretenimento. Para os meus filmes que falam sobre a vida das pessoas, não podem existir esses meios de manipulação. Para tal, tenho que abdicar desses mesmos artifícios narrativos.

Por vezes eu sinto que os meus filmes adquirem um certo padrão de thriller, mas isso é a forma com que sinto em relação à vida. As pessoas estão cada vez mais stressadas, angustiadas e decepcionadas.  

É complicado filmar tudo num só take?

Por onde devo começar. Primeiro analiso e escolho a luz, abordo a cena e tento ver qual o ângulo que a filmar, atesto através da perspetiva que anseio contar esta determinada ação. Penso num cenário, durante a escrita, e procuro algo que corresponda ao imaginado. Se não encontro, construo-o. Obviamente que aquilo que imaginas não se aproxima da realidade, mas enquanto não houver mais nada a fazer, adaptas.

Depois trazes a equipa técnica, que trazem equipamentos de variados tamanhos e feitos. O Cinema é um processo bastante técnico que parece criativo. A partir daqui, posicionamos todos nos seus devidos lugares, apontamos a câmara para o ângulo desejado, e os atores decoram os seus diálogos e gestos em cenas de 10 a 15 minutos, pelo qual devem efectuar na perfeição. Todo este processo, só numa cena, demora … deixa lá ver … 20 a 40 takes.

É cansativo, complicado e no final do dia sentimos absolutamente exaustos, mas igualmente realizados. Todos os dias acabo por falar com cada um dos membros da minha equipa, encorajando-os para mais um round ou reparando certos pormenores. Todos os dias é uma luta, se não conseguimos filmar mais que uma cena num dia, tudo bem, alteramos o  cronograma, e recomeçamos no dia seguinte. Eu consigo fazer isto, até porque sou o produtor dos meus próprios filmes, o que me dá o direito de usufruir desta liberdade.

Quanto a novos projectos?

Não falo sobre novos projetos, porque nunca tenho novos projetos. Penso demasiadas vezes nos meus filmes, naquilo que fiz bem, no que correu não tão lindamente, no que foi importante referir ou o que precisa ser referido. Mas também penso nas pessoas, mais concretamente naquilo que as deprime, que as deixa angustiadas. Tento compreender as suas naturezas, as suas causas, e em consequência disso, por vezes, acabo de encontrar o filme certo, o ritmo certo e a história certa.

Muitos pensam que tudo se resume a direção, mas para mim o mais relevante é o argumento. Procuro sempre o tópico, o tema e como o abordar, e como deve ser abordado.

A derradeira birra

Hugo Gomes, 24.11.16

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O ator de 26 anos, Brady Corbet, joga de “cabeça” para a cadeira de realização e a sua proeza de transmitir os elos comuns entre as diferentes infâncias de ditadores é por si, um ato de tirar o chapéu. Esta sua primeira longa-metragem é um perfeito exemplo de como o terror é um género mestiço, sem idiossincrasias que o podem identificar num “só estalo“. Com claras influências de “The Omen” (Richard Donner, 1976) e de “Rosemary’s Baby” (Roman Polanski, 1968), “The Childhood of a Leader” é um corte dramático que transmite uma atmosfera em total sufoco, onde a tragédia é já uma premonição real e profetizada, e nela as personagens lutam ao sabor dos ventos de mau agoiro para contornar tal marcante destino.

Uma criança de perigosos ideais, sob um evidente rancor e golpes vingativos em pleno crescimento no seu íntimo, Brady Corbet dirige Tom Sweet (o nome revela-se numa paródia jocosa à sua personagem), que maneja todo este ódio na criação de um “pequeno monstrito” em ascensão para uma ameaça global. No centro deste ódio proeminente, encontra-se Bérénice Bejo num papel que partilha a mesma repudia que a personagem de Sweet, esclarecendo que em cada “psicopata” existe uma ligação umbilical com a sua matriarca. O confronto entre as duas forças faz-se sentir numa narrativa dilacerada em capítulos recorrentes a “birras“. O ringue está montado, o espectador é o testemunho desta “origem” maldita com livre inspiração num conto de Sartre, que nos transporta para um ambiente de negligência afetuosa e disfuncional, o berço de um perverso “pensador“, que analisa cuidadosamente a sua insaciável vendetta.  

Se por vezes a câmara de Corbet revela genialidade com tendências suicidas (existe um dilema à lá Antonioni na sua sequência final, onde esta parece ser autónoma do seu manejador), é na banda sonora composta por Scott Walker que se contrai toda essa suspeita crescente. Apesar da “burguesia” envolto desta infância, tendo em conta que os grandes ditadores e infames líderes não obtiveram tais condições nos seus “verdes anos”, “The Childhood of a Leader” é,  apesar disso, uma das mais entusiasmantes e corajosas conversões de realização vista nos últimos anos. Corbet foge a “sete pés” do destino marcado dos atores convertidos a diretores e sustenta um filme verdadeiramente assombroso, e o refere da forma mais sugestiva e misteriosa possível.

"We Found Love"

Hugo Gomes, 17.11.16

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Andrea Arnold estreia em terras norte-americanas com esta “road-trip” sob toques coming-to-age centrado numa América profunda, os EUA white trash” onde residem os potenciais apoiantes das campanhas eleitorais de Donald Trump. Mas este “American Honey”, título inspirado numa música de Lady Antebellum, está acima de qualquer ideologia política. Aliás, de ativismo nada tem, apenas rebeldes sem causa, quase enxertados dos filmes de Nicholas Ray ou do tremendo “Badlands”, de Terrence Malick (uma provável inspiração), onde o percurso vale mais que o seu próprio destino, se no caso de existir algum…

Arnold tem uma “queda”, uma fascinação por criaturas raras, personagens que dificilmente captam a simpatia do público. Quando o conseguem, este é um efeito dignamente carnal. São estes jovens que acompanhamos impulsivamente numa direção algo intrusiva e “empestada” por uma coletânea musical que atribui o espírito indomável e hedonista ao grupo. No centro desta jornada a “nenhures”, Star (Sasha Lane), uma rapariga de 18 anos, decide certo dia, após o contacto com um grupo de jovens viajantes, largar a sua vida “aprisionada” numa família disfuncional e desfragmentada para embarcar no desconhecido. O desconhecido leva-a a várias cidades do interior dos EUA, tendo como objetivo desta mesma viagem em “família”, a venda de inscrições para revistas, uma tarefa inicialmente difícil para Star devido à sua perturbada natureza.

Depressa o grupo revela-se numa espécie de tribo, conduzido por regras e “tradições”, sendo que entre elas contam-se a imperativa reação a uma música da Rihanna, ou o combate, algo agressivo, dos dois membros mais fracos desse mesmo grupo, tudo em concordância com uma ordem, ou um desordem marginal como quiserem apelidar. O espectador fica a mercê desta “mini-sociedade”, “irmãos de sangue e de sémen” sem qualquer perspetiva sócio-política, até porque a grande veneração aqui é “gozar” os curtos anos de jovialidade, a “frescura” de um mundo ainda por descobrir e de sentimentos ainda por sentir. Serão estes os “meninos perdidos” de Peter Pan?

Se o grupo é isento de qualquer resistência, seja ela qual seja, já Andrea Arnold tenta a espaços colmatar as suas ideias, reduzindo-as a aspectos cénicos, técnicos e sensoriais. Os imensos point-of-view de insectos estabelecem um ponto de contato com uma sociedade indulgente e futilmente insignificante, e a relação destes com a protagonista provam a sua gradual procura intrínseca, no final a “coisa” evolui, entre as suas mãos já não existe invertebrados, mas sim uma tartaruga como símbolo de uma nova etapa na ainda “verde” vida.

No meio desta jornada, ainda deparamos com uma curiosa sequência que liga a Star com o seu lado mais afetivo e emocional, tudo ao som de Bruce Springsteen e o seu “Dream, Baby, Dream”, o provável único momento em que o espectador tem a certeza absoluta que a nossa protagonista é mais que uma somente adolescente vazia quase dilacerada de “Spring Breakers”, de Harmony Korine. Talvez seja algo mais, porém, a sociedade não auxilia qualquer desenvolvimento nas questões da sua identidade. Para finalizar, Shia LaBeouf está em grande, provando que Hollywood não é o único caminho para a eventual imortalização.

Cinquenta Sombras de Verhoeven

Hugo Gomes, 14.11.16

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Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert em "Elle" (2006)

Isabelle Huppert é mais que uma atriz num imenso papel, é a representação do desejo inconcebível no cinema, seja da ingenuidade testada em “Amateur” (Hal Hartley, 1994), passando pelo fetichismo sádico de “The Piano Teacher” (Michael Haneke, 2001) até chegar a este "atentado" ao mundo embalado no politicamente correto que é “Elle” (2016).

Antes de avançarmos para o universo sexualizado e masoquista de “Elle”, devemos focar-nos no homem que o orquestra, o holandês Paul Verhoeven. Um antigo antagonista do bem sagrado que “emigrou” para a indústria norte-americana para nos dar como presente as suas “delícias turcas”: foi a violência capitalizada pelas corporações em “RoboCop” (1987); o militarismo autoritário de “Starship Troopers” (1997); a sátira mais ou menos incompreendida da indústria do desejo em “Showgirls” (1995); e, por fim, possivelmente o seu maior êxito em terras "yankees", “Basic Instinct” (1992), carregando desejo e perversidade à imagem da "femme fatale".

Nesse período, o cineasta foi um herói desprezado, automaticamente catalogado por conotações misóginas e de claro fetichismo gráfico e explícito. Mas uma considerável reavaliação e lenta progressão do seu estado de graça aconteceu com a fuga de Hollywood e das suas limitações após uma das suas piores obras (“Hollow Man”, uma versão de análise à perversidade ao mito do Homem-Invisível). Após o curioso sucesso de "Black Book" (2006), Verhoeven afastou-se dez anos e quando regressou, aventurou-se em territórios negros cada vez mais proibidos ao género masculino: a fantasia sexual da mulher. Afastando-se do "mainstream" deslavado de um “Fifty Shades of Grey'', por exemplo, “Elle” inicia-se através de um "Cavalo de Tróia", um isco às nossas consciências, que é a violação.

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A partir daqui, regressamos automaticamente ao dispositivo de vingança no cinema em voga na década de 70 e da sua falsa imposição de mulher forte, mas Michèle, a personagem de Huppert, é a vítima de uma monstruosidade sem saber que foram abertos alçapões tenebrosos da sua inconsciência: o sexo, cada vez mais monótono para esta cinquentona socialmente dominante, é injetado com uma frescura mórbida e a traumática experiência é o seu mais negro fetiche.

Apesar de ser uma obra esteticamente limpa de um realizador habituado ao peso da sua agressiva falsidade (basta olhar para “Robocop” ou “Total Recall” para acertarmos no seu tom), em “Elle” surgem os ecos de “Basic Instinct". Isento dos fascínios pelo território sexual entreaberto, é o passo em frente e sucessivamente recuo para servir de mirone à posição da mulher na sociedade. A total emancipação de Michèle deriva da sua importância de abraçar os seus demónios interiorizados, porque uma mulher que persegue as suas próprias e mais íntimas fantasias é como um terror imperceptível para os homens que não acreditam na igualdade de géneros. 

E se acreditarmos realmente nisso, “Elle” é um filme feminista e um ato de provocação.

Suicídio em direto

Hugo Gomes, 12.11.16

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Antonio Campos repesca um dos episódios mais trágicos da televisão norte-americana – o suicídio em direto da pivô e jornalista Christine Chubbuck – para apurar as causas que levaram esta mulher a cometer ato tão grotesco.

A composição desta personagem misteriosa deve-se muito a Rebecca Hall que subjuga-se a este tormento psicológico num filme que aposta desde cedo na iminência da catástrofe. Obviamente, que o espectador sabe como terminará esta aventura pessoal, assim como um certo filme de James Cameron que “flutuou” nos box-office em 1997, mas o aqui em causa não é um filme válido pelo seu desfecho, e sim, um episódio recorrido em decadência humana, uma tragédia grega que joga o meta-palco da sua criação.  

Campos sempre teve um “fraquinho” por personagens torturadas, absorvidas por um ambiente em total decomposição, assim como o destino destas. Rebecca Hall cria em Christine um derradeiro duelo intrínseco entre uma réstia de esperança, uma salvação que o espectador aguarda desesperadamente, porém, sabendo à partida que tudo é em vão. Sim, este é o tipo de obra que qualquer guia televisivo expõe o aviso do “anti-feel good movie“, o cinema que reflete o quão frágeis nós somos, o quão vítimas somos dos nosso próprios objetivos profissionais, ao mesmo tempo, Antonio Campos dá-nos certas luzes sobre a condição e evolução da comunicação social, em certa parte, a forma como o jornalismo adaptou-se às audiências e não o oposto.

Existe aqui, evidente inspiração aos dotes dramáticos de “Network”, de Sidney Lumet, à hipocrisia implementada pela “caixinha mágica” e a sua interação com o exterior. Contudo, como biopic, se é que Christine anseia afirmar-se como tal, o filme tende em afastar-se desses lugares comuns de agenda award season, apostando na ênfase dramática e na criatividade desse sentido nas suas personagens. A depressão é um efeito secundário e o complexo desempenho de Rebecca Hall a principal medida.   

Yes, but …

Chico-espertismo quântico, linguístico ou o que quisermos

Hugo Gomes, 10.11.16

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O que mais odeio é filmes que me atirem "areia para os olhos", que anseiam ser mais inteligentes que o espectador e afinal, não o é. Arrival: O Primeiro Contacto é esse filme, Denis Villeneuve bateu no fundo, em um: imitar o estilo de outros, dois: não saber que a simplicidade é uma astuta virtude e três: possuir um argumento tão esburacado e recheado de Deus Ex Machina, como isso fosse claramente criatividade.

Qual é o teu nome ... o de agora?

Hugo Gomes, 09.11.16

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Vamos por partes, a esta altura do campeonato, cruzar ficção com documentário, o docudrama que os portugueses tão bem sabem fazer, já não possui ciência nenhuma, muito menos quando os objetivos de um filme como este “El Futuro Perfecto” não sejam sobretudo claros.

Dirigido por Nele Wohlatz, alemã radicada na Argentina, este é um filme onde a evidente intenção é apresentar a condição do imigrante e demonstrar que mesmo em perseguição de um “better place”, sonham e aspiram por um “futuro perfeito“. A língua é também um importante vínculo identitário e até certa altura “El Futuro Perfecto” aposta nas palavras soltas, ensinadas sob a intenção de sobrevivência e sem um mínimo despejo emocional. Mas também é sob esse tratamento frio e encoberto que nos descortina uma mensagem perigosa e por vezes nacionalista, será que este grupo de personagens que cede à cultura de fora é característica de tamanha inexpressividade, será que uma língua oposta aquela que nós dialogamos as tornam em relativos “humanoides robóticos“.

Emoção, é decerto, aquilo que a obra de Wohlatz não ostenta, e como prova dessa falta de interação humana, empatia é algo que nos falha enquanto espectador. Mas enfim, o que dizer do resto deste exercício de hibridez documental? “El Futuro Perfecto" esgota a sua virtude experimental em minutos, depois do “I get it“, tudo é recorrido para crise identitária por parte da personagem principal, a jovem chinesa Xiaobin, que autointitula-se de Beatriz e até certa altura de Sabrina. A rapariga, que entra em restaurantes para poder ler o respetivo menu, em busca de uma ligação carnal com as palavras em dialeto latino, vive um romance imaginário que a coloca no trilho da sua escapatória emocional. Essa dita relação é vazia e penosa de assistir, a culpa é diversa, ou os atores (não-atores) não possuem a aptidão de ultrapassar as palavras, ou a realizadora não procurava qualquer foro emocional para não cair no erro de ceder ao telenovelesco.

Conforme tenha sido a decisão, este é o romance (se podemos chamar assim), mais “gelado” dos últimos anos. “El Futuro Perfecto” fica-se pelo exercício, mas uma experiência vista e revista vezes sem conta. Esperemos que o futuro de Nele Wohlatz soe melhor que isto.

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