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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A 300 milhas da ética

Hugo Gomes, 30.10.16

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Será a inocência nos dias de hoje um aspecto perigoso? Será que essa natureza encontra-se perdida perante um Mundo cada vez mais cínico, e assumidamente hipócrita? 

Com a crise dos refugiados a atingir um dos seus picos em 2015, uma fotografia automaticamente tornou-se viral, que suscitou novas discussões quanto à gravidade, ou não, do problema da migração forçada. Essa mesma foto exibia um corpo de uma criança, vítima desse mesmo fluxo migratório, um corpo sem vida que deu à costa da Turquia. Logo, os medias focaram na atenção global desta mesma imagem, explorando o passado desta precoce morte, ao mesmo tempo, sob um tom sensacionalista, desenhar um percurso futuro para a nossa vivência. A comoção foi geral, mas depressa começaram a surgir questões quanto às imagens, quanto à manipulação da história e dos interesses políticos por detrás (de ambos os lados) que repentinamente culminavam. Por isso, questiono, será a inocência válida nos tempos que decorrem, sem ser sobretudo, questionada? 

Enquanto refletimos, temos que ter em conta que é uma mistura de inocência como também de pura ingenuidade que integram os maiores conflitos do nosso Mundo, desta forma são a base deste “300 Miles”, a descoberta das razões que levarão a um dos mais badalados cenários bélicos dos tempos decorrentes. Sim, é a Síria, a temática tabu para muitos, a “mina de ouro” do mediatismo para alguns, e é aqui o arranque deste registo fílmico que reúne a pessoalidade do seu realizador (Orwa Al Mokdad) com a urgência de um jornalista “spotlight” sob tendências de guerrilha. 

Porém, neste último ponto, as respostas poderão ficar aquém das nossas expectativas, até porque a perspetiva de todos é requerida desses mesmos dois fatores: inocência e ingenuidade. Da mesma forma que as duas crianças ao relento apontam para o Sol em busca de um ponto negro, visível com um persistente olhar (um simbolismo infantil da busca de uma outra perspetiva), temos os rebeldes, ou homens sob uma grande vontade de rebelar … contra o quê, ou quem? … nem eles mesmo sabem. Tudo se resume a isso, a inocência nos mais diferentes ramos, e é essa mesma que nos cega, tornando-nos desinformados, em simultâneo nos revela hipócritas e cínicos nas nossas buscas. 

Como documentário, Orwa Al Mokdad vai “beber” bastante do “Silvered Water, Syria Self-Portrait” (apresentado em Portugal no Lisbon & Estoril Film Festival de 2014), que também utiliza as diferentes plataformas de gravação de vídeo (com principal relance as webcams e câmaras de telemóvel) para mapear um conflito. Mas não é por isso que este “300 Miles” não possui a sua importância como documento de registo. Ou será que estamos a ser inocentes?

Raridades do cinema da R.F.A. na Cinemateca Portuguesa

Hugo Gomes, 30.10.16

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Ludwig Ii – Glanz Und End Eines Königs (Helmut Käutner, 1954)

Em julho do ano passado, o crítico alemão Olaf Möller esteve presente na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, onde apresentou um ciclo de filmes “desconhecidos” do cineasta conterrâneo G.W. Pabst. Numa das sessões, mais concretamente a de “Das Bekenntnis Der Ina Kahr” (“As Confissões de Ina Kahr”, 1954), Möller exibiu a sua indignação sobre o desprezo que o cinema produzido em tempos da R.F.A. obtém nos dias de hoje, inclusive na própria AlemanhaSegundo as suas palavras, era como se esse período fosse “apagado” da História do Cinema, e como grande culpado apontou para o Manifesto de Oberhausen, que viria a gerar o chamado movimento moderno, a partir de 1970, em que se destacaram nomes como Werner R. Fassbinder, Wim Wenders e Werner Herzog e que redefiniram a cinematografia alemã até aos tempos atuais.

Desde então, determinado em fazer redescobrir tais obras para o público e para a comunidade cinéfila, regressa à Cinemateca com uma extensa mostra de “filmes rejeitados“, um pouco como havia feito no anterior Festival de Locarno, mas destas vez sob versão alargada. O programa inclui mais de trinta e uma sessões de produções raras e de tamanho valor histórico, assim como artístico. Desde policiais, thrillers, melodramas, comédias, entre outros, passando pela velha guarda como Fritz Lang, de autores que se impuseram nos anos 50 junto à crítica como Wolfgang Staudt e Helmut Käutner, e ainda revelações surgidas como Jean-Marie Straub. Olaf Möller estará em Lisboa, a partir do dia 15, para apresentar regularmente os filmes e o crítico francês Jean Douchet fará uma conferência, ilustrada com excertos de filmes, sobre “The Indian Tomb” (1959), de Fritz Lang, provavelmente o mais conhecido filme desta extensa selecção.

O ciclo arrancará no próximo dia 2 de novembro, com “O Rei Louco” (“Ludwig Ii – Glanz Und End Eines Königs”, 1954), de Helmut Käutner, com Klaus Kinski no principal papel.

Ver programação completa aqui.

... que a morte vos acompanhe

Hugo Gomes, 28.10.16

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Como o cinema é fascinado por road trips! Como as mesmas transformam-se em jornadas pessoais ou coming-to-age para personagens inocentes! Em “Calabria”, por outro lado, essa viagem, mesmo tendo um objetivo seguro, é uma linha plana sem desenvolvimentos pessoais, as suas personagens são as mesmas, inerentemente falando, do início, no meio e no seu desfecho.

Tal como Louis L’Amour havia proclamado – “O caminho é o que importa, e não o seu fim” – “Calabria” adquire a sua dimensão enquanto produto documental no percurso, onde dois imigrantes suíços (um português e um sérvio), sem nada em comum, tirando o facto de serem ambos empregados de uma funerária, partem numa longa viagem para entregar o corpo de um imigrante italiano. A narrativa faz-se pelas paragens em áreas de serviço e hotéis, que funcionam como pausas de uma ininterrupta confissão. Os dois protagonistas dialogam sobre os seus medos, os ideais, o amor e até mesmo a cultura. O morto que transportam é o testemunho mudo desta troca de palavras, recorridas a um tom de companheirismo, sem afetos gratificantes, nem evoluções aparentes na relação de ambos. São meros colegas, prontos para cumprir o seu trabalho, cujas conversas correspondidas são meras distrações, entretenimentos para as horas que seguem, porém, são nelas que concentra as suas respetivas expressões étnicas.

Um retrato etnográfico sem as odes do neorrealismo, sem a abrangência de uma determinada investigação? Pois bem, “Calabria” é um estudo sobre gente, um jogo ao acaso inserido nesta ideia onde a morte é a aproximação destas vidas, e cuja diversidade celebra-se perante festividades mórbidas. O realizador Pierre-François Sauter humaniza a imigração, atribui-lhes uma face, um passado, sonhos e relações afetivas a um fenómeno cada vez mais desprezado, criticado e sobretudo anexado a agendas políticas. “Calabria” é um agradável exercício de temáticas indiretas, na qual a Morte é novamente servida como palco de fundo para um estudo sobre a Vida.

As rugas que o tempo cria e que a memória tira

Hugo Gomes, 27.10.16

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Deixem o entretenimento de lado, a faceta artística e experimental decidida a quebrar barreiras da transcendência visual e sonora, e encarem o seguinte – o Cinema é também um registo de memórias. Uma “cápsula do tempo” que congela esse mesmo Tempo, para ser alvo de descobertas para futuras gerações. O que somos? O que vivemos? Qual a nossa real natureza? Em “A German Life” nenhuma dessas perguntas será por fim respondida, mas o ensaio de preservação de pedaço de História é aqui invocado em todo o seu esplendor. Existe neste documentário uma aura passiva, de não alterar o rumo dessa mesma memória, mas sim citá-la com as mesmas palavras proferidas por quem as realmente viveu, como vivente desses mesmos episódios temos Brunhilde Pomsel.

Quem é esta mulher? Perguntam vocês. O que de interessante tem a sua vida para merecer tal registo? O interesse não vem aqui ao caso, Pomsel não é um “animal enclausurado” exibido numa coleção zoológica, é sim uma mulher disposta a narrar as suas maiores “humilhações“. Humilhações, essas, que a própria descarta de culpas e inocências – “vivíamos numa época diferente“, “… para condenarem a mim, primeiro condenariam todo o povo alemão“. Brunhilde Pomsel foi a estenográfica do Departamento de Propaganda Nazi, a mulher que fora constantemente próxima de um dos mais odiados homens de toda a “pegada” deixada pela Humanidade, Joseph Goebbels. O homem em questão foi um dos maiores responsáveis pela propagação dos ideais do Partido Nazista, e um dos braços direitos do próprio Adolf Hitler. O discurso de Pomsel, por outro lado, não tende em denunciar diretamente todo o trabalho exposto por estes “homens fardados“, mas sim descrever os sentimentos experienciados num país fechado, sob forte influência política de quem culminou uma Guerra sem precedentes.

São quatro, os realizadores deste “A German Life'', um quarteto de mentes que serviram como investigadores do background de Brunhilde Pomsel, aqui exposta a uma confissão sem fim. Visualmente, a fotografia de tons cinzentos salienta o rosto envelhecido da protagonista (aplausos para Frank Van Vught). Este é um rosto de 103 anos, as rugas são como “cicatrizes” marcadas pelo maior dos inimigos, o Tempo. E antes que o Tempo faça das suas, deixando as memórias residente de Brunhilde Pomsel no puro esquecimento, os realizadores Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer tentaram aqui uma “corrida” contra esse mesmo némesis. Explorar e extrair de Pomsel, as relevantes palavras para um futuro próximo.

“A German Life” ostenta uma brilhante fotografia, como já havia referido, que atribui-lhe uma sensação de platina a um prolongado “talking head“, uma entrevista ditada com emoção e comoção de quem é subjugado, intercalado com propaganda anti-nazi e até mesmo simpatizante nazi (faltava mais a fundo na própria propaganda do Departamento de Pomsel). Não tendo uma estrutura brilhante na sua concepção enquanto documentário, “A German Life” vive como um documento sem culpas, nem denúncias do foro moral a uma, acima de tudo, cidadã de um período negro da nossa História. Aqui, a importância das palavras anexadas às memórias à beira da extinção, valem mais que ressentimentos ou decepções que aqui poderiam extrair.

“A Verdade é o maior inimigo do Estado.Joseph Goebbels

Ama-San: sereias prometidas, sereias cumpridas

Hugo Gomes, 26.10.16

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Cláudia Varejão prometeu-nos sereias, e à sua maneira, ofereceu-nos um grupo delas neste “Ama-san”. Uma comunidade tradicional de mulheres que aventuram-se no mar para sustentar famílias, uma visão que tem seguido séculos e séculos de História nipónica.

O fio tecido que protege os avanços tecnológicos dos seus mergulhos, são as réstias dessa tradição abraçada com a sempre avante modernidade, mas nem por isso que o estatuto destas deixa-se desvanecer pela mudança dos tempos. Varejão compara-as com as “mulheres de Caxinas“, o exemplo português mais próximo desta sociedade falada no feminino, para depois aventurar num ensaio antropológico que interliga os dois estados destas figuras; o Mar, esse berço de vida que as envolve em tamanha doutrina, e o mundo civil, a família que têm à sua espera para afeiçoar.

Tal como o Japão, um país moderno que caminha lado a lado com a sua herança tradicional, “Ama-san” cria um paralelismo com a nação para depois seguir em “puro mergulho” num retrato de gestos e de costuras familiares. Mas a realizadora consegue, invejavelmente, com toda esta jornada a um Oriente pouco conhecido (a última vez que vimos esta comunidade no ecrã foi em 2009 numa curta-metragem de Amie Williams), uma estrutura narrativa quase ficcional no seio desta vertente de registo documental. Com a complementação das sequências submarinas que captam no espectador a sua faceta mais “zen“.

No geral, Varejão cumpre um belíssimo filme, contemplativo e nada apressado em “inundar” as audiências, faze-las sentir parte desta longa família, tão japonesa, com certeza. Sim, prometeram-nos sereias e aquilo que acabaram por nos dar foi o que de mais próximo temos destas mitológicas sirenias. Todavia, isto não se resume a alternativas, “Ama-san” é realmente um filme pelo vale a pena cedermos à sua delicada sedução.

Estranho ... não inovar

Hugo Gomes, 25.10.16

Doctor-Strange-2-4.jpgFala-se por aí que este é o "abanão" que a Marvel precisava, como isto fosse o pico da originalidade no cinema, até do universo dos super-heróis do cinema. Não, meus amigos, é o mais suportável dos últimos do estúdio, pelo menos faz esquecer o maldito Civil War. Mas é um filme genérico, passageiro e longe do genial. Pastilha Elástica com sabor!

O “artista” Wang Bing deambula pela crise migratória

Hugo Gomes, 24.10.16

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Vamos ser claros, Wang Bing é daqueles documentaristas com iniciativa, em constante busca por temas transgressivos e, alguns deles, tabus de uma China em plena crise identitária e moral. Sim, ele é incansável no seu trabalho de terreno, nas horas de filmagem, na abrangência do seu olhar que neste caso é a lente da sua câmara, tão operacional como ele. Porém, falta-lhe objetividade, sobretudo no campo da edição. Existe nele uma possessão de material realmente forte, o que o impossibilita descartar algum do seu tempo de filmagem em prol do produto final. Em consequência, são filmes como estes, de temas fortes, mas sem a força necessária para que o espectador “abrace a causa“. Talvez seja por isso que Wang Bing filma tanto, as suas criações não são centradas, nem devidamente frontais para com que realidade que o próprio encara, são objetos deambuladores, etnograficamente ricos como documentos de igual matéria, longe da provocação que precisa para realmente ser ouvido.

O documentarista chinês não faz “épicos de violência social“, faz ensaios cansativos e completamente desarmados de temas que deveriam ter o seu “quê” de alarme, e neste caso - “Ta’ang” - este registo do exílio levado a cabo por famílias inteiras burmesas, como escape da guerra civil, parece apenas servir como uma decoração para ferir os mais susceptíveis. São quadros vivos, mas dentro deles, existem pessoas que lidam com a sua desgraça, uma má sorte que para Wang Bing são matéria que compõem o seu mais recente ensaio de “poverty porn“, um embrião dos reality shows dotados de uma certa tendência fetichista. A envolvência neste mundo em “cacos“, onde as “personagens” tendem em lidar com as suas próprias situações, deixando para trás partes íntegras das suas vidas em busca de quem os acolhe, algo mediático tendo em conta a crise dos refugiados que nos bombardeia os medias, sendo que “Ta’ang” revela-nos um caso específico ignorado por estes mesmos. Uma viagem desesperante sem fim, que o realizador filma com a maior das tranquilidades. Sentimo-nos cúmplices perante este mau trabalho de investigação, onde os testemunhos secam perante o “on” prolongado da câmara, sem qualquer indício de moderação nem coordenação.

Talvez, Wang Bing não queira manipular esta realidade, e nisso faz ele muito bem, porém, o que adianta mostrar por mostrar, o que adianta captar este novo-realismo que não nos eletriza, ao invés disso, nos entendia da forma mais emocional possível. Será Wang Bing um voyeurista da desgraça alheia? Pelos vistos sim, nada aqui aponta-nos estarmos cara-a-cara com o documentarista do novo século como fora aclamado desde sempre.

"Hit the road, Jack, and don't you come back"

Hugo Gomes, 23.10.16

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Em Hollywood o que não falta são realizadores sem personalidade, e dentro dessa vaga encontramos o muito pomposo Edward Zwick, que assumindo agora como o tarefeiro num franchise sob uma segunda oportunidade poderá ter feito o melhor filme da sua carreira.

Sim, estamos a falar desse mesmo, o autor dos êxitos de “The Last Samurai”, “Blood Diamond” e “Glory” (mais conhecido como a obra que garantiu o primeiro Óscar de interpretação a Denzel Washington), está neste momento resumido a um nome de lista, o qual embarca na segunda aventura de Jack Reacher, a criação de Lee Child, convertido numa variação híbrida entre Ethan Hunt / Dirty Harry por parte de Tom Cruise. É acima de tudo uma personagem militante e autoritária que se move como um freelancer ao serviço de uma nação, as suas "missões" tem sim, personalidade, algo que primeiramente confronta com o estilo confundível de Zwick.

Mas verdade seja dita, Cruise é daqueles atores bem ligados ao star system, e porque não considerá-lo num autor emancipado, ao invés de referirmos o "sujeito" sentado na cadeira de realização? Estamos perante num automático filme de ação, mas nada de irritante aliás, porque a sua automatização é oleada e lustrada com os propósitos da sua estrela, e em comparação com o primeiro tomo (estreado entre nós com algum agrado em 2012), este “Never Go Back” é deveras "plus" emocional, até porque humanizar heróis e vilões são o prato do dia, e como ninguém mais acredita em "homens de ferro", porque não encher esta satírica personagem com traços paternais (de velha guarda, claro).

Outro ponto que marca este novo Jack Reacher encontra-se refletido na produção, existe nos créditos um nome que devemos tomar nota, Christopher McQuarrie. Realizador do filme de 2012, mas que conheceu o êxito verdadeiramente com o quinto “Missão: Impossível”, cujo paralelismo com este “Never Go Back” é simplesmente na condução das personagens femininas. Se na aventura de Ethan Hunt era Rebecca Ferguson a acompanhar as "peripécias" do herói com tamanha dignidade e solidez, neste segundo Jack Reacher é Cobie Smulders (sob a experiência da série da Marvel, “S.H.I.E.L.D”) a livrar constantemente do rótulo de "dama em apuros", ao mesmo tempo dignificando o papel feminino nas Forças Armadas.

Mas pronto, de resto este novo capítulo de uma saga (veremos o que ditará o box-office, confirmando assim ou não, a força de Tom Cruise em bilheteira), é simplesmente um veículo de ação que não envergonha ninguém, nem ofende o intelecto do espectador (nesse aspecto o franchise “Fast and Furious” sempre fora um atentado), que sob uma previsibilidade um quanta atormentada garante-nos um modelo, hoje em dia descartado, do cinema lúdico e ferozmente capaz dos tempos de Charles Bronson. Mas fica na mesma o aviso à navegação, nada aqui de verdadeiramente vintage.

Tão Só o Fim do Mundo, os autores, as suas fraquezas, solipsismo e os seus egos

Hugo Gomes, 22.10.16

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A difícil arte de ser Xavier Dolan, as complicações geradas por ser aclamado em tenros anos e consecutivamente ao longo da sua, até então, imaculada carreira. Se por um lado, ouvimos constantemente citações de historiadores e outros especialistas cinematográficos de que um “autor, até a obra mais fraca é melhor que tantas de outros realizadores“ [a política dos autores, génese teorizada pelos Cahiers du Cinéma], por outro, através de reflexões sobre o sentimento vivido por este “Juste La Fin du Monde” ("Tão Só o Fim do Mundo"), um outro conselho surge ao meu alcance: “quando se gosta de um autor, somos os primeiros a admitir que ele errou“.

Porém, antes de começarem com as “pedradas“, questiono o seguinte, será correto considerar o ainda jovem franco-canadiano Xavier Dolan, num autor cinematográfico? Porque não!? Contudo, não é esta a derradeira questão aqui envolvida, aliás, muitos esperam que o nosso “cineastazito” prove de uma vez por todos que é digno desse título (sendo que em “Mommy” já havia provado que as aclamações precoces não foram um erro). Mas em “Juste la Fin du Monde”, a recente obra que ganhou mediatismo com os “surpreendentes” apupos na sessão de imprensa de Cannes, existe um claro tom de “auto-estima elevada“. Talvez tenha sido esta sensação de “triunfo antes do sabor” que causou o maior choque entre o então adorado Xavier Dolan e os críticos que apelidavam o seu novo trabalho como “desastre artístico“.

Adaptação de uma peça teatral de Jean-Luc Lagarde, “Juste La Fin du Monde” beneficia de um ambiente caótico de procrastinação, enquanto a intriga começa a ganhar forma, desenvolvendo para lado nenhum, dando a sensação de impotência e clara frustração ao espectador. Esta é a história de um escritor homossexual que vai encontro da sua família para anunciar a sua breve morte, visto que é um seropositivo de HIV. A respetiva família, que desconhecia o seu paradeiro e o estilo de vida levado a cabo pelo seu ente querido, tenta o receber da melhor forma possível, mas os assuntos inacabados, que o nosso protagonista deixou para trás, o confrontam.

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Sim, Xavier Dolan acerta na “mouche” quanto ao teor a ser invocado neste drama de complexidades familiares, mas o que não anteviu é que por vezes o cinema tem que desligar do palco teatral para assumir a sua vida emancipada. Resultado disso, evidentemente, é um esforço descomunal na caracterização dos seguintes personagens, inseridos num rótulo de morte anunciada, a outra é os desempenhos, prometedores mas “fogo de vista” face a uma claustrofobia descontrolada deste enredo de manutenção de relações afetivas.

Existem demasiadas pontas soltas aqui, obviamente que Dolan não irá resolver tendo em conta o respeito pela obra original, mas falta de extensão, do alinhamento, e da renegação com a artificialidade constrangedora com que tenta transformar drama de 2ª Arte para Sétima Arte, o leva para “becos sem saída” de criatividade intrínseca. Ao menos assumisse tudo como “teatro filmado” como Manoel de Oliveira sempre o fizera. Assim sendo, as personagens parecem “morrer” demasiado cedo, as atuações não se vingam perante tal voluntária barafunda (mesmo que Vincent Cassel, Gaspard Ulliel e Marion Cottilard mereçam destaque) e a técnica (fotografia, por exemplo) entra em conflito com o trabalho de escrita e de coordenação.

E assim chegamos a outra questão, será que a obra merecida dará a sua devida reavaliação, a revisão por novas audiências? Não nego, cheira-me a filme a ser valorizado daqui a uns valentes anos, mas também não é com esta “fruta podre” do cesto que nos vai fazer desligar do potencial de Dolan. Por isso, que venha esse “The Death and Life of John F. Donovan”, porque está provado que o fim do mundo não é matéria para o nosso realizador.

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