Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Adeus, minha Camareira!

Hugo Gomes, 31.12.15

journal-d-une-femme-de-chambre.jpg

Journal d'une femme de chambre (Benoit Jacquot, 2015)

Edouard_Manet,_A_Bar_at_the_Folies-Bergère.jpg

Un Bar aux Folies-Bergère (Édouard Manet, 1881 / 1882)

Se em “Les adieux à la reine”, Benoît Jacquot ousou em caricaturar a aristocracia francesa sob a perspetiva de uma simples, mas devota, serva, na sua nova obra – “Journal d'une femme de chambre” (“Diário de uma Criada de Quarto”) – o realizador ostenta o mesmo fascínio na exposição, tendo como alvo principal, porém, a burguesia do início do século XX.

Inspirado na homónima obra literária de Octave Mirbeau, um livro publicado em 1900 que causou polémica por abordar a domesticidade como uma forma de escravidão em tempos modernos e por denunciar comportamentos indignos da classe burguesa, eis um filme morno que concentra-se num rigoroso trabalho de reconstituição de época e no desempenho aventureiro de Seydoux, novamente na pele de uma serviçal com aspirações para mais do que apenas assistir os seus respetivos “amos”.

Contudo, a acidez prevista por Jacquot neste retrato, onde utiliza a mesma arma da sua obra anterior, é algo dissipada, não só pela sua narrativa emaranhada por flashbacks sem intenção cronológica e pela fraqueza do seu clímax, como pelos holofotes constantemente apontados na sua protagonista, mais do que o cenário envolto. Tal condução torna a personagem de Seydoux, Celestine, numa figura omnipresente, efeito que prejudicará tudo o resto. Até mesmo Vincent Lindon, que compõe um homem ambíguo sustentado por ódios e medos irracionais, é defetivamente transladado para segundo plano.

Mas a grande fragilidade aqui é nunca conseguir constituir uma crítica em jeito cronista nem afinar as causas levadas a cabo por Mirbeau (a versão de Luis Buñuel em 1964, com Jeanne Moreau, é mais "certeira”). “Diário de uma Criada de Quarto” apenas “dispara” em disfuncionalidades ultrapassadas e nesse sentido o filme parece reconhecer sem trespassá-los para a modernidade dos nossos dias. Para todos os efeitos temos uma obra que emana um pedaço de História antiga e a velha questão da luta entre classes que o cinema francês tanto adora abordar, mas sem efeitos verdadeiramente transcendentes às nossas causas impostas.

Todavia, mesmo dissolvendo-se nos seus atributos técnicos e na prestação da sua atriz, Benoît Jacquot evidencia o seu gosto pela cultura artística, “easter eggs” que servem não como dispositivo narrativo, mas como embelezamento da mesma. Um exemplo disso, por breves momentos, temos à nossa mercê uma reconstituição fílmica do famoso quadro de Édouard Manet, “Un Bar aux Folies-Bergère”, contrariando a sua essência melancólica.

Não se trata apenas de um cavalo num quarto, mas sim de um poema vivido.

Hugo Gomes, 28.12.15

Martin Verdet pactua com o poeta Franck Venaille para um exercício criativo jubilante que, em certo sentido, funciona como um experimento ricamente sensorial. O objetivo? Ilustrar os poemas do próprio Venaille, proclamados em conjunto com o realizador, ecoando em uma única sala, o tubo de ensaio para decifrar as emoções envolvidas nessas chamadas palavras iluminadas.

Atenta à genialidade dos seus "protagonistas", Je me Suis mis en Marche é uma obra que reúne um surrealismo declarado e a metáfora envolvida nesses mesmos versos, uma obra de execução, de improviso e de imaginação que poderiam ser de alguma forma incutidas no intelecto e no gosto literário do espectador, se ele for recetivo a se induzir a essa extensa cultura, à jornada para os limites do ser imaginado e do espaço físico.

No entanto, é nesse sentido que encontramos o grande fracasso de Je me Suis mis en Marche, não na sua limitação estética e cénica, apenas destacada na exposição dos autores na condução desse ensaio verbal, mas na sua atitude de atravessar a frio uma plataforma talentosa de imagens e som [Cinema] com a complexidade emocional da sua injeção poética, um híbrido que por diversas vezes soa estranho e que após essa estranheza emergente é atacada por um sentimento de júbilo masturbatório que nos faz questionar a essência do prolongamento desse espetáculo.

Como Alain Cavalier, Verdet demonstra a infinidade da narrativa no cinema documental e experimental, um conjunto de imagens e sons que nos transportam para o conhecimento das matrizes de todas as formas e plataformas. No entanto, essa contemplação seria muito melhor servida no cerco de uma curta-metragem, e sabendo que Je me Suis mis en Marche é, de qualquer forma, não é uma longa-metragem de longa duração (70 min). Ver, sentir, mas nunca verdadeiramente deslumbrar, são os lemas desta corrente fluvial.

Os Melhores Filmes de 2015, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 27.12.15

Para dizer a verdade 2015 foi um ano produtivo em termos cinematográficos, o qual deparamos com futuros clássicos do cinema mundial e novos olhares que nos fazem acreditar na força desta Sétima Arte. Cinematograficamente Falando …, elabora as 10 melhores obras cinematográficas de 2015, um conjunto de talentos a ser descobertos, viagens vertiginosas, animações deslumbradas que revelam os nossos seres mais íntimos, e cinema que homenageia o próprio conceito de cinema.

 

10) Inside Out

unnamed.jpg

"No final, são poucos aqueles que não deixam ser dominados pela Alegria e ao mesmo tempo pela Tristeza. Um sorriso estampado nas nossas faces, consolidando com a triste beleza da derrota. A nossa derrota para com o tempo, onde as nossas preciosas memórias se desvanecem no horizonte longínquo da nossa mente. Como é tão raro encontrar um animação que nos faça sentir ... simplesmente mortais."

 

09) Whiplash

9lpdg6kqa9ww3og0p4gu1vn0o2cdw0.jpg

"Resultado, em sintonia com o esforço tremendo de Mille Teller, temos um dos finais mais impares do cinema norte-americano recente, evidenciado um embate físico e psicológico entre dois actores de gerações completamente diferentes. Segundo algumas fontes, Whiplash esteve prestes a nunca sair do papel, mas quando saiu foi consagrado os prémios de Júri e de Público do Festival de Sundance e de momento encontra-se nomeado aos Óscares, nomeadamente a de Melhor Filme. Uma prova que obviamente o barulho causado pelo filme de Damien Chazelle fez-se ouvir."

 

08) João Bérnard da Costa: Outros Amarão as Coisas que eu Amei

still_0_3_790x398.jpg

"Essa constante auto-analise, uma narrativa intercalada entre a linguagem própria do cinema (Ordet, de Carl Theodor Dreyer, o seu "favorito" Johnny Guitar, de Nicholas Ray, e até mesmo a mentira prolongada da cinematografia de Lubitsch) e os seus escritos lidos pelo seu filho, funciona como uma das pinceladas que contribuem para este esplendoroso retrato, o retrato de Bénard da Costa, o seu intimo hino de amor ao cinema partilhado por todos. Até porque, tal como indica o título - Outros Amarão as Coisas que eu Amei - Costa não está, nem esteve sozinho. Esta relação com o Cinema permanece intacta, cada vez mais amada, mesmo que as memórias tendem em tornar-se mais distantes, mas com imagens projetadas em tela, que tudo torna-se numa razão de existência. Do Cinema com Amor!"

 

07) Gett

MV5BMTc2NTg1NTY1OV5BMl5BanBnXkFtZTgwMjE3MjA4MTE@._

"A caricatura encontra-se de certa forma presente na descrição do tribunal, nas testemunhas que entretanto surgem em "palco", aludindo a críticas sociais, e no próprio processo ritualizado da simples facultação do divórcio. Visto como um herdeiro de 12 Angry Men, de Sidney Lumet, Gett ainda nos presenteia com um certo tom vintage. Este é um filme do qual será difícil nos divorciar."

 

06) Sicario

sicario-1024x682.jpg

"Para sermos exatos, este Sicario é tudo um pouco, um obra fabulista, um ensaio de realidade fincada, com toques variáveis de descrição dessa mesma realidade cinematográfica, um panfleto sem ser evidentemente um, ou um olhar sem julgamentos a um panorama conhecedor, contudo, mirado sob um receio pessimista (tal como é verificado no seu sublime e subliminar final, transcrevendo uma catarse aos sonhos de paz mundial que teimamos a prometer e a acreditar)."

 

05) Mad Max: Fury Road

Mad-Max-1.jpg

"Se formos descrever este Mad Max numa simplicidade quase massacrante, poderemos insinuar, e com convicção, que todo o filme é uma ida e volta, um autêntico "freak show" que não irá deixar defraudados quem tem como único propósito a diversão. Esteticamente é um novo Mad Max, porém, o modelo continua a ser o antigo."

 

04) A Most Violent Year

a-most-violent-year-image-oscar-isaac-jessica-chas

"A juntar a este conto de o "Bom Ladrão", J.C. Chandor é dinâmico na sua planificação, encarando este trabalho como os pioneiros do género. Apesar de muita coisa ter acontecido de 1981 a 2014, em termos cinematográficos e de linguagem fílmica, A Most Violent Year não deve ser menosprezado. É um espectáculo violento, intenso e convicto como poucos. Façam o favor de prestar atenção neste realizador e no seu respetivo elenco." 

 

03) Birdman (The Unexpected Virtue of Ignorance)

transferir.jpg

"Iñarritu reinventa-se, expõe-nos um filme inclassificável, um tipo de cinema de molda para cada espectador ao invés do contrário (o final é a indicação disso mesmo). O vencedor do Óscar de Melhor Filme de 2015 é uma atípica obra-prima do cinema moderno, uma parábola narrativa interdita a todos aqueles que preferem limitar à sua própria “sabedoria”. Vivemos numa sociedade de ignorantes e de hipócritas, guiados por egos injustificáveis e uma cultura desvalorizada."

 

02) The Tale of Princess Kaguya

Princess_5-1529522576-726x388.jpg

"Aliás é arte aquilo que corretamente devemos apelidar este The Tale of the Princess Kaguya, um festim de "paladares" para o olhar que arremata a lenda e a emancipa, adquirindo forma e vida própria em tela. Tocante, viciante, a história interminável, a fantasia possível pela animação, que por sua vez possível pela visão deste mestre. Um adeus terno, Isao Takahata deixará imensas saudades, e se vai."

 

01) As Mil e uma Noites

1001.jpg

"Desaparecido, enquanto corpo, porque a alma de autor encontra-se nas mais tenras veias deste Mil e uma Noites, a maior epopeia cinematográfica do cinema português."

 

Menções honrosas: Kreuzweg, Ex Machina, 45 Years, Clouds of Sils Maria, It Follows, Phoenix

Os Sonhadores

Hugo Gomes, 17.12.15

07442c70c22be013bdfd345234832c49.jpg

Se tivéssemos que avaliar atores como raças caninas, então difícil seria negar a existência de pedigree em Louis Garrel, o filho do cineasta Philippe Garrel, o neto do ator Maurice Garrel e ainda afilhado do também ator Jean-Pierre Léaud (o imortalizado Antoine Doinel dos “Les Quatre Cents Coups”, de Truffaut). Porém, não estamos aqui a discutir a árvore genealógica do protagonista de “The Dreamers”, mas sim confirmar a sua experiência, ou a possibilidade desta, captada na sua própria faceta artística. Talvez seja esse contacto direto com o Cinema, um dos motivos para avançar da interpretação para a realização de uma primeira longa-metragem. 

Estampa-lo com a expressão “tal pai, tal filho” é visto como uma pura hipocrisia para ambos os lados. Não só Louis difere das influências supostamente recebidas pelo seu progenitor, como demonstra uma jovialidade mais hiperativa e simultaneamente, ao contrário do que se poderia imaginar, “acorrentada” aos velhos costumes da cinematografia francesa. Aliás, como o próprio havia salientado numa visita a Lisboa, é previsível apelidar o seu filme como um filme francês na sua ingénua forma. 

“Les Deux Amis” (“Os Dois Amigos”) resulta na enésima abordagem do ménage-à-trois francês, um conjunto de relações afetivas (romance e “bromance“) que chocam neste composto triângulo isósceles, onde o terceiro elemento (Golshifteh Farahani), de natureza misteriosa, tem como propósito perturbar uma já vincada amizade masculina. A desmistificação dos três estarolas sem pingo de slapstick, mas que encontram o comic relief no embaraço – na humilhação das suas personagens – apresentam uma espontânea vontade de destacar num mundo firmado pelas rotinas agendadas. 

Esse mesmo trio "quebra o gelo” de alguma forma, vivendo o dia como fosse o último das suas respectivas vidas. “Os Dois Amigos” é também um retrato sobre a maturidade, por vezes precoces em contraste com um período globalizado e recheado de medos interiores. Aqui, as personagens masculinas são "bebés grandes“, seres inadaptados a responsabilizar dos mais cruciais atos, e ela, dotado por um propósito quase “disnesco” de procurar algo mais na limitações do seu quotidiano. 

image-w1280.webp

Escrito a meias com o seu amigo Christophe Honoré e co-protagonizado com outro amigo seu, Vincent Macaigne, o realizador Louis Garrel providência dos elementos mais estereotipados do cinema francês para recriar uma interpretação íntima desses mesmos códigos. De tal maneira que este “Os Dois Amigos” funciona como uma prolongada reinterpretação do êxito de “The Dreamers: Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci, o qual também protagonizou um tão famoso ménage-à-trois. “Queria fazer amor com este filme”, disse o próprio realizador / ator quanto aos desejos desta sua estreia na direção – concretizar uma obra íntima – um prazer seu que possa ser partilhado pelos demais. 

Até certo ponto, Louis tem razão, o cinema não tem que ser um entretenimento de massas pensado e automatizado por produtores para preencher uma faixa ou classe etária, mas sim, um pedaço de nós (cineastas) com o deleite de ser distribuído para um terceiro elemento: o espetador. Nesse ponto de vista, Louis Garrel aprendeu com o seu pai, mesmo que o seu cinema não traga nada de novo para estas “bandas“.

O que Farei eu com esta Tela Escura?

Hugo Gomes, 15.12.15

20-branca-de-neve.jpg

Nada contra o exercício de escuridão em si, a ausência das imagens levam-nos paradoxalmente às mesmas, porém, é o gesto, um manifesto instintivo que torna Branca de Neve somente num ato auto-sabotagem. Tudo o resto, as reflexões em cima da mesa, são somente escudos criados em proteção de um autor (sublinha-se, grande autor). Para uns foi um casaco esquecido, para outros uma provocação, para João César Monteiro o "quero que se foda". Dito e registado.

A propaganda que nasce do ativismo

Hugo Gomes, 12.12.15

mf-racingext-sharkfin16x9.jpg

Começo por descrever Racing Extinction, o novo documentário de Louie Psihoyos, como um filme propaganda. Porém, tal definição nos coloca na ténue posição de como definir os tons propagandistas e o porquê desta obra usufruir de tal tom. Como acontecera com The Cove - A Baia da Vergonha, o anterior e galardoado trabalho de Psihoyos, Racing Extinction explicita um problema a nível global que deveria sobretudo ser colocado imparcialmente para além de qualquer política, ideologia social ou antropocentrismos.

A verdade é que vivemos em tempos negros, tempos em que se discute a crueldade envolto na conceção de um bife, mas que se esquece perfeitamente do desaparecimento não travado de um rinoceronte. Tempos em que se fala do abandono de um animal de estimação mas que se ignora o desflorestamento das florestas tropicais e a gradual exterminação da diversidade biológica que habita nesse ecossistema. Ou seja, Racing Extinction, sem soar como tal, critica o próprio ambientalismo moderno, e implora por uma mudança radical de todos para impedir a chamada quarta Grande Extinção em Massa. Psihoyos indicia um filme sobre os parâmetros do jornalismo de intervenção, demonstrando a preservação como uma atitude pensada que busca a cerne do problema e não comete em atingir o ativismo reacionário.

É triste depararmos com tal situação, o desaparecimento de uma fauna e flora única por este mundo fora, mas para o travar há que sermos melhor do que aqueles que anseiam destruir. Racing Extinction é propaganda sim, e quantas lições dá aos mais variados produtos dessa categoria.