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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Maliquices" a saldos ...

Hugo Gomes, 17.11.15

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"You gave me peace. You gave me what the world can't give. Mercy. Love. Joy. All else is cloud. Mist. Be with me. Always."

Há quatro tipos de realizadores a exercerem a sua função como tal no Cinema: o ilustrador ou “tarefeiro” [termo mais pejorativo, é verdade], o mero profissional no ramo dedicado a cumprir as ideias dos outros e os propósitos dos produtores; o megalómano, um pouco como as convenções formadas por Griffith que tornaram a cadeira de realizador em algo absoluto, competente para os seus propósitos como também dos seus superiores hierárquicos; os autores versáteis de ideias variadas que submetem a um gosto autoral criativo e sempre emergente; e por fim os conformados, os autores formalistas, preso a uma marca e guiados em redor de uma solitária criativa.

Nesses termos, Terrence Malick é um transcendente, tendo iniciado a sua carreira no terceiro tópico e atravessando atualmente no último, um realizador condenado a olhar constantemente ao seu próprio umbigo e a utilizar o mesmo “truque de magia” vezes sem conta, a fim de causar espanto. O que não apercebe é que o seu público poderá eventualmente cansar desta sua egotrip. Na mesma demanda de cineastas barricados no seu artesanato, surge nesta discussão Yasujiro Ozu, o nipónico “parte-corações” que nos presenteou verdadeiras obras-primas como “Tokyo Story” e “Equinox Flor”, foi também acusado de apresentar-se constantemente num registo fechado e formalmente identificável à sua pessoa nas suas últimas estâncias. Contudo, ao contrário deste Malick crente, as relações entre as personagens e a afeição destas para com a intriga encontram-se presentes e para além de gradualmente desafiadas e reinventadas.

Em “Knights of Cups”, a demanda é outra. O cunho de Malick é visível - a jornada esotérica soa como um mero caso de estética - o qual o nosso senhor repete a sua forma, assim como na invocação dos seus temas intrínsecos, entre os quais a sucessão patriarcal [“Tree of Life”] e uma busca por um amor absoluto, confinado à inexistência [“To the Wonder”]. Neste ciclo "malickiano" encaramos o sonâmbulo, cuja vida é escrita como uma premonição derivada das lidas cartas de tarot, e é através dessa vidência, que Rick (Christian Bale) vagueia num prolongado e interminável sonho. Esse mesmo que arranca com a morte de um ente querido, passando pela obsessão de um pai para que os seus herdeiros sigam um legado anteriormente construído. Morte e herança de braços dados tornam o nosso protagonista numa incompleta marioneta que se aventura na boémia do dia e na luxúria da noite para compensar o seu incógnito signo (o filme é repartido em capítulos consoante as místicas).

Neste caso até poderei anexar o nosso Malick àquela expressão “que tão bem eu filmo”. “Knights of Cups”, tal como os anteriores filmes do cineasta, é recorrente a montagens rápidas e instáveis, com personagens erguidas pelas presenças físicas dos atores e pelas divagações filosóficas sussurrantes em voz off, os diálogos são uma raridade e quando acontecem alienam a sua estabelecida narrativa. Os dramas de Rick, os seus dotes enquanto mulherengo são encurtados com as, admitimos, belíssimas imagens de Natureza ou da beleza encontrada em “cenários de cartão” ou edifícios imaculados pelo tempo e pelo espaço (quase como um Andy Warhol sem expressionismo).

Mas o descaramento é a não-reinvenção de Malick, um homem preso à sua “ilha” que concebe um produto visualmente belo, mas vazio, atropelando esse suposto trabalho de construção com citações pseudo-filosóficas e uma burla ingressada num ciclo rotineiro. A certa altura, numa breve passagem, Joseph (Brian Dennehy), pai de Rick, vagueia de forma apática pelos cenários emanados por Malick até chegar a um palco de teatro, observado por uma multidão indiferente. Essa sequência transmite a verdadeira essência de “Knights of Cups”, um ensaio pouco expressivo, exposto e rasurado de forma a soar na sétima maravilha do Cinema Contemporâneo. Infelizmente, tal como é dito a determinada altura “Se o nariz de Cleópatra fosse menor, o Mundo mudaria”, neste caso, se o ego de Terrence Malick fosse menor, até poderíamos ter um grande filme. Ao invés disso … postais e maliquices!

Guerra e Cosmos, LDA

Hugo Gomes, 13.11.15

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Existe algo muito estranho em “Cosmos” (Andrzej Zulawski, 2015) que nos inquieta numa primeira “entrada”. Esta adaptação do homónimo livro de Witold Gombrowicz, e sob a alçada de Paulo Branco, nos apresenta uma bizarria que nos afasta simultaneamente nos aproxima. Uma atração pelo vazio e uma renúncia pelo seu burlesco, uma objeto em órbita que esconde no seu interior um cosmos propriamente dito e propriamente dilacerado do título. Perante essa cosmologia quase indecifrável e do outro lado uma tendência anárquica ao nosso conformismo (aqui subjugada às intenções do protagonista, interpretado por Jonathan Genet). Enfim, conforme seja a relação para com o espectador, é um facto que Victoria Guerra é hipnotizante! A atriz portuguesa revela força para romper as suas próprias barreiras. Vemos nela o cariz de conquistar o palco internacional.

The Searchers: procurando o "bom" selvagem no "vil" cowboy

Hugo Gomes, 06.11.15

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O cinema de John Ford sempre inspirou os bons valores norte-americanos: o patriotismo não como um fervoroso facciosismo mas como uma conduta correta a exercer. É óbvio que nos tempos que decorrem, onde a liberdade de pensamento e da crítica tem cada vez mais lugar no cinema, principalmente em contrário do que se leva a crer o oriundo de Hollywood, filmes como The Searchers (A Desaparecida, 1956) parecem tornar-se, quer socialmente e politicamente, obsoletos, a começar pela representação do nativo como o antagonista e o "invasor", o popularmente apelidado cowboy, como o herói americano por excelência. Panfletos visuais que se distorceram no seu percurso temporal, dando origem a um dos mais impressionantes westerns do seu tempo. Pois bem, esta obra de Ford mesmo com décadas em cima sobrevive "à poeira acumulada" com um valor fílmico constante.

Primeiro de tudo, porque em The Searchers encontramos uma verdadeira escola de cinema em matéria de realização. John Ford é dotado de um olho clínico e de uma sensibilidade estética singular que "remessa" um suposto e vulgar western (que nas mãos de outros serviria de mero enredo para os revisitados lugares-comuns) para o território da obra autoral. Já ninguém filma assim, de forma divinal os desfiladeiros e as paisagens desérticas do Vale dos Monumentos, situado entre Utah e Arizona, e muito mais, em centrá-los sob um jeito simbiótico à ação descrita (a fotografia de Winton C. Hoch é uma mais valia).

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Por outro lado, a face purista americana, as nomeadas discriminações étnicas o qual compõe personagens, principalmente a do protagonista, funcionam como um estudo analítico de uma época, estampando-se como uma linguagem reconstitutiva da mesma, os valores de outrora se convertem em ambiguidades que crescem na medula deste thriller do oeste. Dito isto, torna-se agora fácil entender porque “raio” nos simpatizamos com um personagem tão odiável como a de Ethan Edwards (aquele que é um dos papeis mais sólidos da carreira de John Wayne), um cowboy racista assumido e desertor que evidencia sem pudor a preferência de matar um membro da sua família do que aceitá-lo após uma interação com índios, os ditos "selvagens" que não são como mais como meros reflexos de uma sociedade hipócrita e possante. Isto seria uma tarefa impossível numa Hollywood mais correta, mas John Ford transforma o exemplo "a não seguir" num dos autênticos anti-herói do seu tempo, genuíno nesse contexto de selvajaria do Oeste.

Selvajaria essa, imposta no efeito de sugestão que The Searchers sujeita-se. Talvez seja a censura e a preservação dos bons valores da época que limitou a violência explícita que poderia culminar, quer física, psicológica ou contextual, "abraçando" essa sugestão como uma escapatória formal ao dialeto das imagens. Ou seja, para além de possuir uma estética invejável, luxuriosamente degradante, John Ford ainda requisita e entrelaça o desconhecido, o que as câmaras escaparam e não interessam em captar. Resultado, um filme com mais alusões e evocações do que supostamente aquilo que se expõe gratuitamente, leituras entrelinhas são então necessárias e escalpes são assim retirados como similaridades de dois lados da História do conflito, tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais.

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Se tivéssemos que traduzir para miúdos, The Searchers é um "bonito" western sobre "cowboys bons" contra "índios / selvagens maus", mas sob um olhar mais atento, aperceber-nos que o patriotismo e conservadorismo característico de John Ford é um embuste, o que vemos é o desespero índio, sobrevivendo em terras roubadas e o maniqueísmo evidente é burlado e julgado em praça pública. Aí a decisão é nossa, ou encaramos tudo como uma fantasia cinematográfica com direito a final feliz, ou a extinção de um povo, a conquista abordada por um cinismo fílmico e contraditório. Em que ficamos? Conforme seja o nosso senso, a verdade é que The Searchers é um dos grandes do seu género e nisso estamos de acordo, mesmo nos tempos que decorrem, onde supostamente o "western está morto e enterrado".

"Let's go home, Debbie."

 

Anomalisa: quem quer ser Michael Snow?

Hugo Gomes, 05.11.15

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A temática de Anomalisa tem ligação direta com uma das emblemáticas sequências de Being John Malkovich (Queres Ser John Malkovich?, 1999), a obra de Spike Jonze que contou com o argumento do próprio Kaufman. Nesta respetiva cena, o ator John Malkovich, que interpreta ele próprio, vê-se envolvido numa realidade onde toda a gente é … John Malkovich. A sua face, a sua voz e as suas expressões, tudo replicado nos mais diferentes corpos, um efeito doppelgänger (duplo) novamente requisitado, mesmo sob outras intenções, nesta animação de stop-motion preenchido por veias existenciais onde Kaufman firma o seu potencial nas parábolas criativas.

Aqui, os duplos representam a desintegração do mundo que Michael Stone conhece, um conferencista de motivação pessoal e profissional que sofre daquilo que apelidamos de síndroma Fregoli, uma perturbação psicológica que faz com que o portador acredite piamente que todo os outros são o mesmo indivíduo. Stone, sob a voz de David Thewlis, fica hospedado num hotel curiosamente denominado de Fregoli (não é coincidência!), enquanto confronta o seu passado em estado de erupção e a crise existencial que agrava constantemente, é que o seu redor é homogéneo, a mesma cara estampada em todas pessoas que conhece e que vai conhecendo, o mesmo se refere à voz que lhes é atribuída (por Tom Noonan), onde nem sequer a respetiva mulher e filho, os mais próximos de Stone, escaparam desta maldição/ilusão. Porém, algo insólito no quotidiano de Stone acontece, uma voz divergente, um som há muito não ouvido surge na vida do nosso protagonista.

Anomalisa, inspirado numa peça teatral, também ele da autoria de Kaufman, é uma animação adulta, não somente no sentido temático e no grafismo apresentado mas também pela sua narrativa, que demonstra as raízes do seu material de origem, ou seja do teatro, agraciando-nos com um digno trabalho de mise-en-scéne e da performance interpretativa (sabendo que todas estas personagens são uma mistura de tecnologia e "artesanato"). Sob envolvências kafkianas, Anomalisa emana a profundidade das suas questões filosóficas e existenciais, sempre pautado com um humor subtil e ácido e com um toque visual que todos nós reconheceremos como "kaufmanianos", por outras palavras, digno do universo desta interessante mente que se intitula de Charles Kaufman.

Além disso, este é um filme que acentua a banalidade como um raio de pureza, a singularidade como sinónimo de beleza douradora, e é nisso que Anomalisa parte do principio, não como um romance instantâneo mas como uma reflexão às nossas particularidades, e o apelo de reincidirmos à comunidade que nos força a integrá-la. Tal como acontecera com aquela obra de Paolo Sorrentino, onde a personagem de Toni Servillo deambulava em busca da sua "A Grande Beleza", aqui, Michael Stone procura a sua anomalia, o impulsor que o retirará do mundo que se fez coletivo. Tudo ao som de Cindi Lauper e o seu Girls Wanna Have Fun que ecoa como um canto gregoriano (quase … divinal). Sem palavras para descrever a sua tamanha sensibilidade e conceção. Resumindo: mais um episódio feliz da História do cinema em stop-motion.